Olhar para o ´invisível´
“No vai e vem dos dias, o domingo sempre chega implacável. “Domingo parece ser o dia em que tudo o que vieram buscar no centro se esvai, se esfumaça: não tem gente, nem projeto, nem banho, nem nada… O domingo parece jogá-los de novo para o campo de uma invisibilidade…”
O relato acima, da educadora terapêutica Fernanda Ramos, é um dos muitos que atravessam as páginas de Refugiados Urbanos: rematriamento de crianças e adolescentes em situação de rua, livro recém-publicado pelo Projeto Quixote em parceria com a editora Peirópolis. A obra reúne as quase duas décadas de atuação do programa Refugiados Urbanos, do projeto Quixote, junto às crianças e adolescentes que vivem nas ruas de São Paulo.
“O programa Refugiados Urbanos nasceu junto com o Quixote para trabalhar novas alternativas de vida a esses meninos e meninas que romperam seus vínculos familiares e territoriais para buscar nas ruas as oportunidades que nunca tiveram e se reafirmarem”, diz o fundador e diretor do projeto Quixote, o psiquiatra Auro Danny Lescher, morador do pedaço.
Em sua sede na Avenida Engenheiro Luís Gomes Cardim Sangirardi, 789, na Vila Mariana, o Quixote oferece diversas atividades gratuitas às crianças, adolescentes e famílias em situação de risco, entre elas aulas de capoeira, grafite, leitura, escrita, teatro, dança de rua, culinária, esporte, informática; além de atendimentos psicológicos, serviços de assistência social e grupos terapêuticos para suas famílias.
O trabalho com as crianças em situação de rua, que foi suspenso há 2 anos devido à crise econômica, começava com os educadores terapêuticos (ETs), nome dado aos profissionais de atendimento psicossocial. Diariamente, de modo contínuo, eles acompanhavam as crianças para estabelecer vínculos, o que exigia muito cuidado e tempo. “O centro da cidade é o local onde eles buscam abrigo, pois é onde há sociabilidade, serviços, dinheiro, comida e adrenalina”, diz Auro.
Nas ruas, as crianças e adolescentes se deparam com as mais diversas violências físicas e emocionais. Por conta dessa realidade delicada, o trabalho exige muita paciência para que as situações que se apresentam, como em casos de brigas e ofensas, não sejam respondidas com urgência. Além do olhar dos educadores e das próprias crianças, há também no livro a visão dos comerciantes: “É problema do Estado; entrou aqui, eu coloco para correr…”, “Ninguém faz nada para acabar com esse problema…”, acreditam.
Esse ponto de vista é registrado na obra pela educadora terapêutica Marina. “É certo que meninos e meninas em situação de rua já têm um lugar marcado na sociedade pelo olhar dos outros e também pelo olhar que se coloca delas para elas mesmas: muitas vezes de exclusão, ‘de caso perdido’, ‘de drogado’, ‘ladrão’, ‘mendigo etc. O perigo dessas marcas colocadas é as crianças se identificarem com elas…”
Após cada imersão na rotina das crianças, problema que desafia as maiores metrópoles do mundo, os educadores são amparados por uma equipe do projeto. “Eu tinha essa segurança de ir para a rua para atender qual fosse o caso, com a gravidade que tivesse, porque, quando voltava para o Projeto, tinha ali uma equipe me esperando para me ajudar a dar conta daquela angústia, daquela sensação, às vezes, de impotência”, relata o educador Bruno Rocha.
A presença contínua dos educadores nas ruas é primordial para entender os motivos do rompimento familiar por parte dessas crianças, explica Auro. “O nosso objetivo é saber o local de origem e o que as motivaram a buscar abrigo nas ruas. E, para criar esses vínculos, é preciso uma presença constante. Essas crianças, em sua maioria (85%), vêm de regiões periféricas da cidade, onde as condições de vida são precárias e marcadas pela escassez de oportunidades”, informa.
Ao contrário do que se costuma pregar, a drogadição não está entre as principais causas dessa ruptura. No último levantamento realizado pelo projeto Quixote, em 2011, na região central da cidade de São Paulo, constatou-se que os principais motivos do refúgio são a negligência/abandono (37,2%), a violência física/psicológica (18,3%) e a violência sexual (15,7%).
A pesquisa ainda provou que o consumo de drogas não está entre os fatores determinantes para essas crianças buscar abrigo nas ruas. Essa parcela representa menos de 12,5%. “A droga é a circunstância da vulnerabilidade das ruas e é usada para suportar o que se torna insuportável, como o rompimento dos laços familiares e a falta de referências. A droga não é a causa, é a consequência”, afirma Auro.
O complexo processo de reintegração, chamado pelo Quixote de rematriamento, passa das ruas para o espaço físico, nomeado como consulado. É um espaço pensado para dar afeto, conforto e segurança; um contraponto ao ambiente hostil da rua. Nessa fase elas são acompanhadas por uma equipe formada por assistentes sociais, pedagogos e psicólogos e é onde podem se alimentar e tomar banho. “Só então que é feito o contato com seus familiares”, explica Auro.
A última fase do processo de rematriamento exige uma série de contatos por telefone e presenciais com as famílias, escolas próximas, serviços locais de assistência social, rede de saúde e vizinhos; tudo isso para preparar o retorno. “O atendimento à família é frequente. Isso é fundamental para possibilitar o acolhimento de retorno e trabalhar os motivos que fizeram da rua um espaço de refúgio. A volta da criança transforma a família, pois ela retorna com novas experiências e mais entendimento sobre a sua história familiar”, ressalta Auro.
A ruptura familiar não é um fato isolado, escreve no livro Cláudio Loureiro. “Nessa questão, o social é o mais determinante quando a gente olha para esses meninos. E quando eu falo social não é só uma questão de uma família disfuncional, mas de uma escola que não foi suficientemente protetora, de um bairro que não foi investido com a presença do Estado. É multifatorial o que determina esse menino ir para a rua… Ali, no Centro, eles têm alguma visibilidade. Com as provocações, estão pedindo para a sociedade olhar e fazer alguma coisa por eles…”
Auro destaca que essas crianças chegam a locais como a cracolândia para encontrar pessoas tão invisíveis e vulneráveis quanto elas, e, lá, são reconhecidas e conseguem sobreviver. “Essas crianças são rapidamente acolhidas por grupos que moram na rua. É nesse contexto que a droga entra em cena e torna a vida dessas crianças e adolescentes ainda mais dramática”.
No capítulo do livro Cenas de uma andança estão reunidos alguns depoimentos e conversas entre a equipe do Quixote e as crianças. Ao ser perguntado pela psicóloga o que queria, o menino Miguel (nome fictício) revela: “Quero uma família. Pode ser meu pai, se ele conseguir; minha tia, se ela quiser; ou uma família adotiva, se tiver”. Já a menina R. fala sobre seus planos para a noite. “Hoje, eu vou dormir lá no Mercado Municipal, porque a calçada é lavada todo dia e eu não quero me sujar”.
O livro registra 80 imagens de crianças brincando. “A pessoa não sai da leitura como ela entrou, pois é um mergulho profundo no dia a dia desses meninos e meninas que estão nessa situação que, de tão triste e urgente, chamamos de bizarra. Mesmo assim, estamos felizes em compartilhar a metodologia desse programa que é uma referência de sucesso no trabalho com crianças em situação de rua…”, enfatizar Auro, que, no início deste mês, viu o Quixote correr o risco de perder a sua sede e ser obrigado a paralisar o trabalho.
O terreno, doado pela prefeitura em 2008, foi contestado pelo ex-industrial, hoje falecido, Nelson Jorio. Ele, na época da doação, pediu a reintegração de posse com uma ação judicial que se arrastou por dez anos. No entanto, no dia 3 deste mês, o Supremo Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu o processo, alegando que o fato implica em grande prejuízo social por afetar um projeto de interesse público de maneira irreversível. “Essa questão do terreno é somente mais um exemplo de como é difícil e improvável um projeto como o Quixote existir. Além do nosso, outros estão nessa situação de aperto ou encerraram as suas atividades”.
Sentado no banco de concreto no jardim da sede própria de 3 mil metros quadrados, Auro permanece com o olhar distante enquanto fala sobre os refugiados urbanos e mostra-se desacreditado com o atual cenário do país. “Quando fundei o projeto, em 1996, jamais imaginei que hoje estaríamos numa situação tão dramática”, desabafa ele, responsável pelo atendimento de mais de 220 mil crianças e adolescentes nesses 21 anos de Quixote.
Ele lamenta que os investimentos em políticas públicas no país caíram drasticamente nos últimos anos. “Estamos resistindo, mas não está fácil. Há dois anos fomos obrigados a encerrar o programa Refugiados Urbanos. O que é mais triste é que o Brasil sabe o que precisa ser feito para mudar esse quadro, mas não faz”.
Embora comemore a resolução que suspendeu o processo, a insegurança persiste. O projeto Quixote depende da ajuda do poder público, de empresas comprometidas e de pessoas físicas para manter as suas atividades. “Fazemos tudo o que está ao nosso alcance, mas não podemos bancar o herói”, diz, e finaliza a conversa com uma frase retirada de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, livro que, segundo ele, inspirou o projeto: “querer salvar o mundo é sublime, julgar-se salvador é ridículo”.