O Vizinho do Século
Durante mais de uma década, tivemos o privilégio de, através dos olhos de Francisco Villano, vivenciar um tempo que graças a ele não foi perdido. Memórias de uma Vila e de uma vida inteira no bairro. Sempre bem-humorado, ao som de músicas clássicas, ele recebia o Pedaço da Vila gentilmente, e contava, divertindo-se, sobre as peraltices de sua infância nas ruas de terra batida ou pelos vários lagos que existiam na região onde hoje é o Parque Ibirapuera.
“Meus avós paternos vieram de Nápolis, e os maternos, de Salerno. Eles se instalaram no bairro, onde meus pais se conheceram e onde eu também conheci minha esposa”. Logo que nasceu, contraiu a Gripe Espanhola, e, depois de desenganado pelos médicos, curou-se. E dizia, orgulhoso: “No ano em que nasci, em 1918, a Gripe Espanhola abateu o bairro e fez várias vítimas, nas quais eu me incluo. Minha mãe costumava dizer que recebi um milagre, pois o padre resolveu me batizar em casa, achando que eu ia morrer! Mais tarde, fui batizado de novo, na Igreja Santa Generosa, paróquia da Vila Mariana que era frequentada pelos imigrantes italianos. Nasci duas vezes!
Presenciou fatos históricos e muitas mudanças. “São tantas lembranças e tantas transformações que é impossível descrevê-las. O córrego do Sapateiro, que começa onde está a estação do Metrô Vila Mariana, passava pelo Matadouro e seguia, tingido de sangue, até o Parque Ibirapuera, que era uma área alagadiça com solo de várzea que ia até a Av. Brigadeiro Luiz Antônio. Jogou muito futebol no local e depois nadava pelado, o que era proibido. “Um dia, tive que sair correndo sem roupa de um guarda! À noite, ia caçar rãs nos vários lagos que existiam antes de se tornar um parque”.
A primeira escola que seu Chiquinho cursou foi na rua Major Maragliano. “Com a chegada de tantos imigrantes, depois da Primeira Guerra Mundial, houve a necessidade de novas escolas, com professores que ensinavam na língua de origem. Meu professor chamava-se Francisco Spera e era muito bravo. Ele usava a palmatória quando algum aluno desobedecia. Eu, para não levar castigo, pegava meu boné e fugia. Até o dia que ele percebeu e começou a guardar meu boné”.
Com a chegada dos imigrantes, o movimento aumentou muito no bairro. Famílias inteiras vieram habitar as ruas já existentes e outras foram abertas. Com elas, vieram o comércio: os armazéns, açougues, padarias, floriculturas, quitandas… Pequenas fábricas, como a de cerâmica. Um hotel, na rua Domingos de Moraes, próximo à estação Ferro Carril, foi aberto para hospedar os imigrantes”.
O comércio, segundo ele, concentrava-se próximo à linha de bonde para facilitar o transporte. “Muitas lembranças eu tenho da Revolução de 1924 — tinha 7 anos. Nessa época, foi inaugurado o Cine Fênix, na rua Domingos de Morais, quando seu proprietário foi atingido por uma bala perdida. O acontecimento preocupou os moradores, que preferiram se retirar para outros bairros onde não houvesse objetivos militares. Devido à revolução as instalações elétricas foram prejudicadas e estavam em reparo e, com isso, aparecem os transportes coletivos: carros de aluguéis e caminhões, o que fizeram com que os moradores próximos às linhas dos bondes, contando com esse novo recurso, procurassem novas moradias longe dos trilhos”.
Depois ele foi para a Escola Sete de Setembro, na Rua França Pinto e concluiu seus estudos no Grupo Escolar Marechal Floriano — num prédio hoje tombado, na Rua Dona Júlia. “Formei-me no ano da Revolução de 32 e tive que receber meu diploma num sobrado alugado na frente do Grupo Escolar, pois os soldados de Getúlio Vargas aquartelaram o prédio da escola”.
Seu Chiquinho começou a trabalhar como barbeiro aos 10 anos, no salão de seu tio. “Uma época em que os homens usavam chapéu, paletó e suspensórios e aparavam os cabelos bem curtos. Já as crianças cortavam o cabelo quase careca, com um topetinho e só usavam calças curtas!”
Palmeirense roxo, sempre que podia, voltava ao tema futebol: “No meu tempo de infância e adolescência, a Vila Mariana era repleta de chácaras e havia muitos terrenos de várzea desocupados. A paixão pelo futebol já era enorme, e bastava haver um espaço para que os homens, adeptos do esporte, delimitassem um campo e juntassem um time para promover campeonatos.
Eram tantos clubes quanto terrenos desocupados: Esporte Clube Humberto I, Esporte Clube Vila Mariana, Clube 22 Bandeirantes, Clube Atlas, Clube Guanabara, Clube Abílio Soares, Clube Atlético Aclimação, Clube Rubem Sales, Mocidade Alegre… O futebol era amador, mas os jogadores levavam os jogos muito a sério. Viviam brigando, e o coitado do juiz, às vezes, apanhava”, divertia-se ao recordar.
De 1930 a 1940, quase todas as ruas principais estavam habitadas e já eram servidas pelos meios de transporte. Na Rua Domingos de Morais, onde as linhas de bonde duplicavam-se, as casas de negócios cresciam. Depois vieram as indústrias: além da fábrica de fósforos, a de chocolate Lacta e a cervejaria, além dos dois curtumes próximos ao matadouro, a fábrica de banha, a fábrica de pasta para calçados Duas Âncoras, a fábrica de pianos Brasil e a de sabão. A cervejaria Guanabara era a única que não situava-se no pedaço.
“A Vila Mariana do tempo de meus pais, onde todos os vizinhos eram como se fossem da mesma família, ficou pequena diante do crescimento da cidade. Quase todos os prédios antigos foram demolidos. Por isso, é impossível de relacionar, citar nomes de escolas, igrejas, estabelecimentos comerciais, repartições, industrias, hospitais …”
Mas, Seu Chiquinho era grande e sentiu a importância de descrever suas memórias. “Aqui nasci, cresci, trabalhei, conquistei muitos amigos (muitos já falecidos…) que ajudaram a construir esse bairro de forma simples. Sou o barbeiro do bairro com muito orgulho e espero ainda contribuir pelos anos que ainda me restam”, dizia ele, que era Ministro do Trabalho da República de Vila Mariana.
Foi o que ele fez por mais de uma década e graças a ele, num país sem memória, nossa história não irá morrer. Adeus, Seu Chiquinho, o senhor aí no céu vai olhar pela Vila Mariana!