O valor do abraço

São dezesseis horas de uma quarta-feira de junho quando um grupo de crianças entra — entre pulos e gargalhadas — na casa de número 188 da rua Coronel Lisboa, na esquina da Rua Gandavo. São meninos e meninas que acabaram de voltar do passeio semanal que fazem à Unipaz, na rua Pedro Morganti, 76, onde participam de atividades ligadas ao meio ambiente.

No interior da casa, a mesa já está pronta para receber as crianças. Desta vez em silêncio, elas fazem o último lanche do dia e aguardam seus familiares, que começam a chegar minutos depois, para então retornar às suas casas. As despedidas ao pé da porta não escondem o afeto: um forte abraço, um toque de mãos combinado (cada criança tem o seu) e muitos sorrisos.

É nessa esquina que está instalado a unidade da Vila Mariana do Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente (CCA), do programa Formando Cidadãos, trabalho realizado pelo departamento de assistência social do Grupo Paulus. Hoje, são três centros do programa de acolhimento. Os outros dois ficam em Osasco e na Freguesia do Ó. 

Criado há sete anos, o CCA Vila Mariana já atendeu cerca de 600 crianças. Na sede, trabalham 9 funcionários, entre eles o super-visor, a cozinheira, a faxineira, uma assistente social e os educadores. Na rua Pinto Ferraz está a sede do Departamento Social da Paulus, onde ficam a gerência, a coordenadoria adminis-trativa e a comunicação do Formando Cidadãos.

O CCA da Vila atende 45 crianças e adolescentes da região, de seis a dezessete anos, em dois períodos: manhã e tarde. Todos os inscritos são estudantes das escolas públicas Fabiano Lozano e Marechal Floriano, e, em sua maioria, são moradores da Comunidade Mãos Unidas, na vizinha Rua Mário Cardim. “Para fazer a inscrição da criança é preciso que ela esteja matriculada e frequentado a escola”, reforça. o supervisor Pedro Figueiredo, 32 anos, à frente da unidade há um ano.

Ele conta que o projeto no bairro já soma sete anos e começou no salão dentro da Comunidade Mãos Unidas. Em 2013, foi ampliado e então transferido para sua sede atual. “Aqui temos mais estrutura para as atividades. Dispomos de uma sala para assistir filmes, outra para jogos e brincadeiras, uma sala para conversas, outra com lousa para fazer alguns exercícios e uma cozinha para as refeições”, observa.

O perfil das crianças que participam do programa é bem distinto, diz ele. “Elas moram com os pais, só com um deles, só com a tia, só com a avó…. Umas são filhos únicos, outras moram com cinco irmãos. É muita diversidade”. Já a quantidade de adolescentes é menor. “Nessa fase as famílias preferem encaminhar seus filhos para fazer um curso profissionalizante pensando no mercado de trabalho, pois aqui não damos curso e nem trabalhamos como se fosse uma escola. 

Atualmente, o número de crianças tem aumentado. Dos 45 inscritos, 31 são meninas e 14 meninos. “As famílias confiam e se sentem seguras por saber que o filho está num lugar de convívio e com adultos responsáveis”. 

Para se inscrever no programa Formando Cidadãos é preciso também a família ter um endereço fixo. A inscrição é feita por meio de uma ficha cadastral no endereço do CCA. As crianças passam três horas por dia, de segunda a sexta. Quem estuda na parte da tarde frequenta o CCA pela manhã, das 8h às 11h; quem estuda de manhã vai à tarde, das 13h30 às 16h30. Segunda, terça e quinta eles fazem as atividades na sede sob a orientação dos educadores. Na quarta e sexta saem para fazer outras atividades promovidas pelos parceiros do projeto. 

Entre os parceiros estão o Clube Escola Unifesp, na rua Estado de Israel, onde as crianças participam de atividades esportivas às sextas-feiras; a Unipaz, onde frequentam às quartas para ficar em contato com a natureza e participar de atividades relacionadas ao meio ambiente; e a Biblioteca Viriato Corrêa, que os convida para assistir aos seus espetáculos. Há ainda uma parceria com escola Marechal Floriano, onde, no fim do ano passado, as crianças foram apresentar um espetáculo musical. “Mantemos uma relação muito próxima com as escolas”, conta Pedro.

Teatrando

Desde maio deste ano a turma do período da tarde começou a fazer aulas de teatro graças à uma nova parceria do Programa com a Academia Aquasport, na rua Amâncio de Carvalho, 308. Todas às quintas, uma van da academia leva as crianças até o local. Quem os aguarda é o diretor e criador do grupo Teatrando, Gilson Totti Dias, que avisa que as aulas, até agosto, estão sendo realizadas na Sala Márcia Maria Rebouças do Instituto Biológico, na Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 1252, enquanto a academia passa por reformas.

“Quando pensei em dar aulas de teatro com o aspecto social, eu queria uma instituição que já tivesse uma estrutura no bairro e fizesse um trabalho sério. E encontrei o Formando Cidadãos. Realizamos três reuniões para ver se as ideias do Teatrando se encaixavam com as do projeto. E tudo se encaixou! Os donos da Aquasport também têm esse olhar social, o que foi fundamental para a concretização do projeto, pois a academia cede o espaço, o transporte e o lanche das crianças”, conta Gilson.

Nessas aulas, Gilson trabalha bastante a percepção das crianças usando o teatro para ajudar em sua formação: “para entender o outro, o espaço ocupado, o trabalho em grupo. Estamos sempre aprendendo a lidar com as diferenças e as frustrações. É um processo de autoconhecimento para todos, que faz libertar a criatividade, o raciocínio, a vencer a timidez  e aprender a improvisar e a criar unidade em grupo. Isso independentemente do nível social”, explica o professor.

No momento são 16 crianças que participam das aulas de teatro. Em seis aulas ministradas, o pro-fessor já percebeu a evolução dos novos alunos. “Em pouco tempo eles já avançaram muito. Isso, para mim, é muito especial, pois é um trabalho que exige, que é preciso planejar. Mas, ao fim de cada aula, eu me sinto energizado para a próxima. Isso é incrível, aprendo muito com eles! A minha responsabilidade como pessoa privilegiada é ter esse olhar para o outro. Precisamos ajudar da maneira que nos cabe. A construção de uma sociedade saudável depende só de nós”, avalia. 

O supervisor Pedro explica que as parcerias são sempre muito importantes, mas precisam estar de acordo com os objetivos e as metodologias do programa, e ainda alinhadas à pedagogia da Assistência Social da Paulus. “Há ainda muita falta de conhecimento sobre o papel da assistência social. Ela não é, como imaginam, um trabalho de educação. É uma área diferente, que se vale também da educação. Aqui não há uma formação específica. Usamos a música, o teatro, canto, dança, jogos, cinema e brincadeiras para trabalhar as relações humanas”.

A convivência entre as crianças e seus familiares é a chave do sucesso do projeto, diz ele. “ Ela é fundamental e está associada à uma série de aprendizados que são a base da nossa sociedade, como o respeito, a educação, a tolerância, o diálogo, o amor. Aqui não é um lugar onde elas serão julgadas. Todos se conhecem pelo nome. Aqui as crianças são as protagonistas dessa história. A gente se preocupa em oferecer um espaço sempre gostoso e uma alimentação nutritiva. Aqui é o lugar onde elas podem falar, questionar, se expressar…

Para fazer algumas atividades, as crianças ainda recebem um kit com cinco livros — cedidos pelo programa Direito e Cidadania da Editora Paulus –  para serem usados pelos educadores durante o ano de brincadeiras. “O deste ano os dois livros principais são Katlyn Sofia, de Andrea Viviana Taubman, usado para trabalhar o tema gênero, e Meninas Equilibristas, de Alexandre Carvalho, com o qual abordaremos o tema protagonismo”, diz o supervisor. 

Cada um dos três educadores do Formando Cidadãos trabalha com um planejamento pedagógico e tem objetivos e metas internas. “Estamos sempre debatendo a metodologia do nosso trabalho e os temas abordados junto com a orientadora pedagógica da Assistência Social da Paulus, que nos visita semanalmente. As atividades ministradas pelos educadores são bem variadas e livres: pintura, recortes e colagens, origami, reciclagem, rodas de conversa…”

Enquanto os filhos estão no projeto, prossegue Pedro, as famílias estão trabalhando. “Na maioria dos casos os pais e responsáveis saem de casa cedo para trabalhar do outro lado da cidade e só voltam à noite. Essa rotina faz com que, muitas vezes, não tenham o tempo que gostariam de ter com os filhos para ajudá-los a desenvolver suas habilidades. Uma das nossas metas é sempre promover os talentos que elas possuem. Muitas crianças saem daqui para seguir os passos desse potencial. A gente mostra que elas podem, que são capazes”.

Uma dessas crianças talentosas que participou do projeto é Alexandre Fernandes da Silva (14), morador da Comunidade Mãos Unidas. Ele frequentou o CCA até os doze anos e conseguiu uma bolsa integral para estudar desenho na Escola Arte São Paulo, onde está há dois anos. “Participar do Formando Cidadãos me ajudou a aprender mais sobre traços de desenho”, diz ele, que já traz no histórico de desenhista uma matéria da revista da Paulus e exposição na sede do projeto. 

Orgulhoso do filho, o pai João Barbosa da Silva conta que Alexandre desenha desde os seis anos de idade e que o projeto foi muito importante para ele aprender mais sobre a arte. “Ele começou a participar do Formando Cidadãos aos seis anos, isso ajudou muito o Alexandre, me ajudou como pai e está ajudando outras famílias. O meu segundo filho segue os passos dele e participa do projeto”, diz João, que revela ainda que cria os três filhos sozinho e que pega no pé para eles estudarem. “Eu estou sempre presente, incentivando”. 

Essa aproximação com as famílias é levada à risca no projeto. Se alguém começa a faltar, Pedro corre ligar para saber o que houve, se está tudo bem, embora eles pouco faltem. “Essa relação é fundamental, fortalece os vínculos. Na primeira quarta-feira do mês, o projeto realiza o Café Convivência, um encontro descontraído com os familiares. Nesse dia, as crianças não se cabem em tanta alegria. Querem apresentar seus familiares para todos os colegas. Num dos encontros pedimos às famílias que desenhassem e escrevessem uma carta de amor aos filhos. Para que as crianças pudessem ver essas mensagens diariamente, fizemos uma exposição”, revela Pedro.

Formado em psicologia e se especializando em projeto social e política pública, Pedro diz que é uma grande satisfação participar do projeto, primeiro em Osasco, onde trabalhou como educador de 2015 a 2016, e, agora na Vila Mariana, como supervisor. “O país está passando por uma crise social muito grande. Falta confiança entre as pessoas, falta diálogo, falta mais amor pelo próximo. Fazer um bom trabalho de base, preventivo, é fundamental. Todos ganham: as crianças, nós, os educadores, as famílias, o bairro e a sociedade.