Literatura Fantástica
Apontado como um dos mais importantes eventos dedicados à produção fantástica na literatura brasileira, o Fantasticon reunirá no pedaço alguns dos principais nomes da ficção brasileira, como Ignácio de Loyola Brandão, Marcelino Freire, Andrea Del Fuego, entre outros autores e críticos literários, para debater as tendências do gênero que se tornou uma febre entre os jovens leitores.
Criado, em 2007, como parte integrante do Encontro de RPG (Role Playing Game) — extinto evento, promovido pela editora Devir — o Simpósio ocorre na Biblioteca Viriato Corrêa, especializada na temática fantástica. “O Fantasticon foi criado com a finalidade de enriquecer o debate em torno do gênero em suas três dimensões: a ficção científica, a fantasia e o horror”, explica seu criador e organizador, Silvio Alexandre.
Para conduzir a programação deste ano, o evento toma como inspiração a frase: “O realismo necessário para construir um retrato da realidade brasileira não pode se abster do fantástico”, do autor de Saramandaia, Dias Gomes. “Ele reconstruiu as imagens do cotidiano brasileiro por olhares imprevistos e inquietantes, fabricando janelas para a contemplação do país, muitas vezes, utilizando-se dos recursos estéticos do realismo fantástico”, justifica Silvio.
No palco central das atividades e dos encontros figuram dois dos principais nomes do realismo fantástico latino-americano, o escritor argentino Júlio Cortázar e o brasileiro Murilo Rubião. Para debater o fantástico na obra de Cortázar, no bate-papo intitulado “Cortázar e o conto sem véus”, o convidado é o escritor Marcelino Freire, que será mediado pelo escritor e pesquisador de literatura fantástica Bráulio Tavares.
Considerado o estandarte do realismo fantástico, o escritor argentino filtrava a realidade até que alcançasse um nível de intensidade que não fosse experimentada no dia a dia. “Seus contos se baseiam no entrecruzamento de espaços e tempos diferentes, na divisão de personalidades, nos padrões e situações, o que confere à sua obra, urbana e cosmopolita em ambientação e linguagem, um caráter diferente dos demais autores do gênero, tidos como rurais”, analisa Tavares.
Na obra do escritor brasileiro, o tema será esmiuçado no bate-papo “Murilo Rubião — o fantástico como representação da realidade”, e a conversa será conduzida pelo professor de literatura hispano-americana da Universidade de São Paulo e diretor do Museu Lasar Segall, Jorge Schwartz, sob a mediação da jovem escritora brasileira Andrea Del Fuego.
Com uma programação ampla e destinada a todas as idades, o Fantasticon deste ano apresentará, entre outras atividades, palestras sobre as diferentes facetas do medo, oficinas literárias, sessões de autógrafo, demonstração de esgrima cênica, dança tribal, contação de história para as crianças e duas exposições: As raízes da literatura fantástica, e Steampunk — a nostalgia do retrofuturismo.
“O evento serve como ponto de encontro para escritores, editores, ilustradores, tradutores e leitores de literatura fantástica. As palestras, pela variedade dos assuntos abordados, abrem horizontes de interesse que despertam a curiosidade dos leitores; e os debates de editores e autores ajudam a fazer a correção de rumos nas políticas editoriais”, ressalta o escritor Bráulio Tavares.
Sucesso de Mercado
Detentora de uma imensa fatia do mercado editorial brasileiro, a literatura fantástica vive seu momento de glória. Nas tradicionais listas de obras mais vendidas no país sua presença é majoritária. E esse sucesso tem se refletido na maneira como o gênero é hoje reavaliado pelas editoras, como a “menina dos olhos”.
No entanto, esse bom momento é um fato recente, como observa o organizador do Fantasticon: “Há pouco mais de seis anos, os autores que ofereciam histórias do gênero para as editoras brasileiras eram solenemente recusados. Hoje, presenciamos uma grande mudança: são as editoras que estão em busca de autores que escrevam literatura fantástica, até criando selos visando esses jovens leitores”, destaca Silvio.
Outro sinal que evidencia essa mudança, ainda segundo Silvio, se dá pela quebra do estereótipo que se criou em torno do jovem leitor brasileiro. “A maioria dos leitores de literatura fantástica é formada por jovens, o que mostra que aquele discurso das editoras de que os jovens não leem livros grossos caiu por terra, já que as obras do gênero, em sua maioria, são extensas”, esclarece.
Esse sucesso do gênero não atinge somente as grandes editoras, mas, sobretudo as editoras pequenas, diz Silvio: “Há uma série de editoras pequenas e médias investindo em autores nacionais do gênero, como Terracota, Tarja, Drago, Estronho e Anadarco. O nicho tem crescido, acompanhando o aumento da produção. Hoje, a maioria delas programa seus lançamentos pensando no Fantasticon”.
Tal como autores que são fenômenos de mercado como J. R. R. Tolkien, criador da saga Senhor dos Anéis; J. K. Rowling, autora de Harry Potter; e R. R. Martin, da série As Crônicas de Gelo e Fogo, o Brasil também tem seus autores que são best-sellers do gênero. “Temos fenômenos como André Vianco, autor de 15 livros sobre vampiros, e Eduardo Spohr, autor de A Batalha do Apocalipse”, relaciona Silvio.
O realismo mágico na literatura
Na história da literatura latino-americana, o realismo mágico foi uma das correntes mais relevantes, encontrando seu ponto alto nas obras de escritores como Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar, Robert Arlt, Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. Porém, sua presença na literatura brasileira sempre foi marcante.
Seus primeiros sinais remontam ao século XIX. “O primeiro momento notável da literatura fantástica no país se deu em 1855, com a publicação da obra Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo. E ainda no século XIX encontramos outros cultores do fantástico, como Inglês de Sousa, Maurício Graco Cardoso e Emília Freitas, autora do primeiro romance fantástico da literatura brasileira, A Rainha do Ignoto, datado de 1899,cuja descoberta só ocorreu recentemente”, revela o organizador do Fantasticon.
Para o pesquisador de literatura fantástica e escritor Bráulio Tavares, há algumas obras importantes desse período inicial do gênero no país: “Temos, por exemplo, o livro Statira e Zoroastes (1826), de Lucas José d’Alvarenga; a Luneta Mágica (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, entre outros”. E adverte: “Essas obras, no entanto, não podem indicar o ‘nascimento’ de uma literatura fantástica, já que não produziram consequências”.
Após ter aparecido com pouca intensidade em autores do século XIX, é no início do século seguinte, com o escritor Murilo Rubião, que o realismo mágico encontrou seu momento marcante, como explica o professor de literatura hispano-americana, Jorge Schwartz: “Murilo Rubião foi o pioneiro do gênero fantástico no Brasil. Toda a contística dele passa pelo viés da narrativa fantástica. Há manifestações anteriores, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, de forma que o autor mineiro teve inspiração em fontes brasileiras”.
Escritor que reescrevia sua obra à exaustão, Murilo Rubião atentava-se ao fantástico presente no cotidiano. “O fantástico na obra dele se insere dentro da tradição do fantástico moderno, da forma como foi definido pelo filósofo e linguista búlgaro Tzevetan Todorov, em seus estudos sobre o gênero. Há nele um momento em que, da mesma forma que Franz Kafka, o fantástico se instala e o mistério não precisa ser desvendado”, analisa Schwartz.
Apesar de ter deixado uma obra enxuta, contendo apenas 33 contos, Rubião continua a exercer profunda influência nos escritores contemporâneos, como é o caso da escritora Andrea Del Fuego. “Considero Murilo Rubião um dos melhores autores de literatura fantástica. O conto ‘O ex-mágico da Taberna Minhota’ está colocado na minha mente e, certamente, influenciou minha escrita; não a linguagem, mas a vontade de inserir realidade e volume naquilo que não se considera real, que não está presente aos olhos”, confessa a escritora.
Durante sua atuação à frente da revista Planeta, publicada no país nos anos 70, Ignácio de Loyola Brandão ajudou a inserir o fantástico no cotidiano dos brasileiros. “A Planeta ajudou a romper muros, a quebrar mitos, a mostrar: olhem, isto existe, faz parte de nossas vidas. No tempo da ditadura, os escritores brasileiros se fingiram de fantásticos para driblar a censura”, observa o jornalista e escritor.
Nas últimas décadas, muitos autores surgiram e novas ramificações do fantástico foram criadas. Entre elas, a literatura “futurista”, possibilitando o nascimento de mundos em que homens são transformados em robôs, em civilizações pós-humanas. “Na literatura brasileira existem muitos autores escrevendo contos e romances sobre o pós-humano, como Fábio Fernandes, Cristina Lasaitis, Cirilo Lemos, entre outros”, relaciona o escritor e colunista do caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo, Luiz Brás.
Hoje, a literatura fantástica congrega diferentes subgêneros, e delimitar seus campos não é tarefa simples, como explica Silvio Alexandre. “É difícil definir e limitar a literatura fantástica, mas podemos dizer que é um gênero em constante transformação, reescrevendo-se de acordo com cada época”, sintetiza.
O realismo fantástico nas artes também será apresentado por meio de cinema, literatura, cultura digital, moda, artes plásticas e visual no Sesc Vila Mariana. Os personagens e histórias além da realidade estarão em filmes, exibidos gratuitamente no CineSábado. Há ainda a instalação Alice no país das maravilhas, uma reiletura da obra de Lewis Carroll, criada pelo ilustrador Adams Carvalho, que traz à luz os ícones que constroem a narrativa, e o concerto A Fantástica Fábrica de Chocolate, com a banda Trupe Chá de Boldo, que fará uma nova trilha sonora para o filme. Tudo isso, além de muitas outras atividades para os aficionados pelo gênero.
Então, é hora de se arrepiar! O realismo fantástico tomou conta da Vila Mariana.
Confira a programação completa no site: http://fantasticon.com.br/