Espírito Santo
Independentemente de cultura ou religião, é o espírito fraterno que norteia a justiça. O artigo de Ronaldo Mathias* provoca uma reflexão sobre os Direitos Humanos no cotidiano do homem urbano e a linha tênue entre a caridade e a fraternidade.
Não foi ontem que nasceu um dos documentos mais importantes que o século 20 produziu. Falo aqui dos 60 anos de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, escrita logo após um dos mais tristes episódios da história humana, a Segunda Guerra Mundial. Aliás, este foi o motivo de seu nascimento: tentar colocar freios em possíveis novas barbáries cometidas pela civilização moderna.
Será que podemos dizer que, decorridas seis décadas, a humanidade aprendeu a conviver respeitando a dignidade do outro? Será que todas aquelas tragédias – genocídio, tortura, intolerância, racismo, perseguições políticas etc. – estão de fato varridas do mapa? Será que não existe alguma ameaça em curso nos dias atuais, capaz de repetir como tragédia nosso infortúnio? Qual o balanço que podemos fazer ao nos aproximarmos do fim da primeira década do século 21 e deste momento, em que se avizinha o período de Festas?
A citada Declaração diz em seu artigo 1.º que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Quando se lê que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, devemos entender – ou deveríamos entender – que não apenas nascem, mas também devem viver com dignidade todos os seres humanos.
Poder educar os filhos em boas escolas, ter acesso a água potável, a segurança pública, a horas de lazer, a condições de trabalho respeitáveis, a bons hospitais públicos, não sofrer injustiças e muito mais, constituem esse nascer e viver com dignidade. Quanto ao que diz a segunda parte do artigo, “dotadas de razão e consciência e devem agir com relação umas às outras com espírito de fraternidade”, o que podemos compreender? Como, no meu dia-a-dia estou agindo com espírito de fraternidade?
Dizer que todos somos dotados de razão não é difícil de entender, nem precisa de maiores explicações, porém, como sei que estou agindo fraternalmente com alguém? O que embala minha fraternidade? Como a fraternidade se encarna nas minhas ações cotidianas?
Ações corriqueiras, como dar esmolas a um mendigo no farol, visitar um asilo uma ou duas vezes ao ano ou fazer uma doação por telefone, seriam ações fraternais? Tenho dúvidas.
Não estou aqui para julgar como certas ou erradas tais práticas. Afinal, ajudar alguém que necessita é um gesto humano, pois somos dotados de razão, de consciência e de sensibilidade. No entanto, uma imagem de que gosto muito para essas situações é aquela fábula do macaco e do peixe: Após uma grande enchente um macaco observou, do alto de seu galho, que um peixe pulava insistentemente na correnteza. Apavorado e querendo muito ajudá-lo, logo se pôs a caminho e, num gesto de caridade – ou de fraternidade (?) –, pegou o peixe e o segurou firmemente. Alguns minutos depois, observou que o peixe havia morrido e, com a tristeza na alma, lamentou não ter chegado antes!
Não estou evidentemente comparando as necessidades dos outros com o peixe da fábula, mas estou sim comparando nossas ações com as do macaco. Às vezes, somos movidos momentaneamente pelo sofrimento alheio e logo nos prontificamos a auxiliar aqueles que demonstram, segundo nosso olhar, alguma carência. Empurrados pelo espírito da caridade instantânea praticamos atos que nos confortam, já que podemos ajudar.
Acredito, porém, que é possível fazer mais. O espírito da fraternidade diverge assim das práticas de caridade. A caridade olha de cima para baixo, enquanto a fraternidade olha e deixa-se ver lado a lado. Por isso, quando olhamos para os fatos que ocorreram no passado e que levaram às guerras, observamos que elas começaram não somente nas decisões palacianas ou nos delírios de mentes insanas. A motivação da maioria das guerras nasceu e continua nascendo na rua da minha casa, no bairro em que moro, na empresa em que trabalho, e isto acontece muitas vezes, ao lado das boas práticas de caridade.
O que quero dizer com isso? Quero falar que o espírito da fraternidade que deve habitar nosso cotidiano é aquele que demonstra solidariedade sim com a exclusão, com a fome, com a dor. Esse espírito deve nos mover constantemente contra todas as formas mais horrendas, talvez até discretas, de injustiça, de intolerância, de racismo, de ódio, que aparecem disfarçadas de superioridade, quando muito de cumplicidade. Digo melhor, somos constantemente provocados por situações que pedem nossa indignação, seja na fila do supermercado, na calçada da nossa casa, no elevador do nosso prédio. O silêncio diante de uma fala intolerante também é uma arma, e vai contra o espírito da fraternidade.
O espírito fraterno, para ser de verdade, precisa ser permanente ao longo do ano, atento diante das injustiças e sensível diante da dor do outro. Só assim poderemos fazer nossa parte, como quer o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A fraternidade só existe quando amparada pela indignação diante de uma injustiça.
* Ronaldo Mathias é professor de Direitos Humanos e Responsabilidade Social e Coordenador da Extesão Universitária da Belas Artes.