De Guarnieri para Guarnieri

Um  dos grandes nomes da dramaturgia brasileira, o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) nasceu em Milão, em 1934, e chegou ao Brasil aos dois anos de idade com os pais, músicos eruditos que fugiam do fascismo de Mussolini. Até a o início da adolescência morou no Rio de Janeiro, com um olhar sempre atento à vida que se levava nas comunidades. Em 1954, muda-se para a Vila Mariana para morar no número 57 da Rua Áurea.

Em São Paulo inicia a carreira no teatro, se torna líder estudantil e funda, em 1955, o Teatro Paulista dos Estudantes, que, no ano seguinte, é unificado com o Teatro de Arena, célebre teatro paulistano. Nele, Guarnieri faz a sua estreia como dramaturgo com o espetáculo Eles Não Usam Black-Tie (1958). Sucesso de público e de crítica, a peça se torna um marco no teatro brasileiro e um símbolo dos ideais de sua geração: a criação de um teatro verda-deiramente brasileiro e comprometido com as causas coletivas.

Foi justamente no Teatro de Arena que Gianfrancesco conheceu aquela que se tornaria a sua primeira esposa, a jornalista Cecília Thompson, mãe de Paulo e Flávio (1959-2016) e avó de Francisco Guarnieri. “Embora os dois morassem na Vila Mariana, nunca haviam se cruzando pelas ruas do pedaço. Foi aqui no bairro que ele escreveu a peça Eles Não Usam Black-Tie, na mesma época em que ficaram noivos”, revelou o filho Flávio Guarnieri, em entrevista ao Pedaço da Vila em junho de 2011. Depois de casados, em 1958, Cecília e Guarnieri foram morar na Rua Santo Aleixo, hoje Rua Augusto de Freiras.

Síntese do artista engajado, que sempre soube o lado de se posicionar, Gianfrancesco deixou um vasto material de arquivo composto por fotografias, vídeos, filmes, novelas e entrevistas concedidas em diferentes fases de sua carreira. E foi a partir desse rico material, guardado por Cecília Thompson, que surgiu Guarnieri, documentário dirigido pelo diretor e neto Francisco Guarnieri.

 “A vontade de fazer um filme sobre o meu avô sempre esteve presente em minha vida e a gênese veio da minha infância. Eu tinha um avô público, que eu sempre via pela TV, e ao mesmo tempo um avô ausente no meu cotidiano, sem intimidade ou cumplicidade. A minha aproximação com ele se deu a partir de sua obra”, diz o neto.

Logo no começo do documentário Francisco explica, a partir de uma fotografia, o caminho que buscou para fazer o filme. “A minha relação com o meu avô foi uma espécie de não relação. Guarnieri foi casado duas vezes e eu sou neto do primeiro casamento. Essa é a única foto que eu tenho dele com os filhos e os netos reunidos. Nela, me chama muito a atenção o espaço entre nós dois, mesmo com a gente sentado no mesmo banco. Fazer esse filme é a forma que eu encontrei para preencher esse espaço”.

O filme foi um dos vencedores da segunda edição do Histórias que Ficam, programa de fomento e difusão do documentário brasileiro da Fundação Companhia Siderúrgica Nacional (SNS) por meio da Lei de Incentivo à Cultura. “A minha proposta foi refletir sobre a sociedade a partir das diferentes gerações da minha família. No fundo, as questões que o meu avô levantou sobre a sua geração também diz respeito à minha geração, que busca uma identificação como nação. É esse diálogo geracional, familiar, artístico e político que eu quis retratar”, explica Francisco.

Para isso, o filme percorre as diferentes fases de Gianfrancesco em constante idas e vindas entre a figura familiar e pública. Na primeira fase de sua carreira, anterior à Ditadura Militar, Guarnieri levou ao palco espetáculos marcados pelo forte teor político e a constante presença de personagens que sobrevivem às margens da sociedade. Em sua segunda peça, Gimba (1955), lança o olhar para as favelas cariocas; em A Semente (1961) evidencia as lutas do opera-riado contra as injustiças dos patrões; e, em O Filho do Cão (1964), reflete sobre o Nordeste.

Num segundo momento, já sob a censura imposta pela Ditadura Militar, Guarnieri começa a fazer o que chama de teatro da ocasião, com peças de intenso teor metafórico que buscavam no passado a possibilidade para driblar a censura e falar sobre o presente do país naquele momento. Nesse período destacam-se as peças Arena conta Zumbi (1965), Arena conta Tiradentes (1967), Castro Alves pede passagem (1971) e Ponto de Partida (1976.

Em entrevistas, Gianfrancesco costumava afirmar que o seu olhar sempre esteve voltado para o presente: “O tempo é a minha matéria, o homem presente, a vida presente”. Essa preocupação em não se distanciar do presente também movimenta o documentário feito pelo neto. “Eu não queria olhar apenas para o passado e tecer elogios ao meu avô, tampouco biografá-lo, pois todos já sabem da sua importância, não era preciso resgatá-lo. Isso, para mim, é estéreo. O meu objetivo foi olhar para o passado como inspiração para entender o tempo presente”, ressalta o neto.

Francisco afirma que foi preciso fazer um recorte na obra do homem e artista Guarnieri para chegar ao seu filme. “Isso foi muito importante para direcionar a pesquisa e o meu olhar, pois havia muito material de arquivo sobre o Guarnieri. De início eu comecei a pesquisar a fundo a sua obra e a sua relação familiar para entender as implicações de suas posições. O meu objetivo foi falar do Guarnieri meu avô e os impactos da sua figura na família e na política. Queria refletir sobre a sociedade brasileira a partir do micro, da minha família, que acaba sintetizando esse macro que nos cerca”. Seus filhos, os atores Paulo e Flávio, também falam sobre a relação do pai e de seu engajamento político que não foi herdado por eles.

Do palco, Gianfrancesco saltou para o cinema e estrelou obras fundamentais da cinematografia brasileira. Entre elas o longa O Grande Momento (1958), de Roberto Santos. Uma parte das filmagens aconteceu na Vila Mariana, como a cena em que Zeca (Guarnieri) desce a Avenida Conselheiro Rodrigues Alves de bicicleta. Mais tarde, a mesma cena foi protagonizada, também no bairro, pelo filho e ator Flávio Guarnieri.

Gianfrancesco também se destacou nos filmes O Jogo da Vida (1977), Maurice Capovilla, Gaijin (1980), de Tizuka Yamazaki, Eles Não Usam Black-Tie (1981), também como roteirista, de Leon Hirszman e a A Próxima Vítima (1983), de João Batista de Andrade. Na televisão conquistou prestígio por onde passou. Iniciou na TV Excelsior, passou pela Tupi, pela TV Cultura (Mundo da Lua) e ficou por muitos anos na Rede Globo, onde atuou nas novelas Mulheres de Areia (1973), Vereda Tropical (1984), Anos Rebeldes (1992), Belíssimas (2006), entre outras.

Transitando entre o núcleo familiar e político, o documentário atravessa a vida e a obra de Guarnieri em constante diálogo com as questões de sua geração, cheia de projetos e esperançosa. Depois a geração seguinte, a dos filhos, num país arrasado pela Ditadura, e encontra no olhar do neto a relação com a geração atual, que busca encontrar uma identificação como país. “A obra do meu avô é extremamente atual. Ela reflete sobre temas que estão muito presentes em nossas vidas, como a turbulência política, a liberdade, a greve e olhar crítico sobre a sociedade”, destaca Francisco.

Narrado em primeira pessoa pelo neto, o filme explora os conflitos familiares, mas sem, no entanto, tomá-los como elemento central. Trata-se sobretudo de uma mediação entre diferentes gerações de sua família com um olhar crítico que perpassa pelo avô, pelo pai Paulo, pelo tio Flávio e a por si mesmo, refletindo sobre a ação política (coletiva) e familiar (individual), a responsabilidade do artista para com o seu tempo e as proximidades e divergências entre as gerações.

No momento, o documentário está sendo exibido dentro do circuito Histórias que Ficam, da CNS, festivais e em escolas públicas do país. A sua estreia comercial está prevista para o segundo semestre deste ano, diz Francisco. “Entre outros lugares ele foi exibido no Festival de Tiradentes, no Rio de Janeiro, e no Centro Cultural São Paulo. Ainda este ano, após a sua entrada no circuito comercial, ele também será exibido no Canal Curta!”.

Na vida e na arte Gianfrancesco Guarnieri, ou Cesco, ou Guarnica, como era chamado pelas pessoas próximas, foi um homem simples, barrigudo, que falava com todos e era, sobretudo, um excelente ouvinte. No palco ou fora dele sempre demonstrou uma grande preocupação com os rumos do país e nunca deixou de se posicionar sobre os temas mais caros. Num trecho do documentário, Gianfrancesco ensina: “Quando o amor é maior que a cabeça, só se pode fazer política com o coração”.

Assista o teaser do documentário Guarnieri, acessando: www.facebook.com/TaturanaMobi/videos/802141099961871