Cidade de Luzes e Sombras

Para  German Lorca (93), a boa foto está em todo lugar, capturá-la é apenas uma questão de olhar. Expoente de uma geração de fotógrafos que despontou na década de 60 e renovou a fotografia no país, à qual também pertenceram Thomas Farkaz (1924-2011) e Geraldo de Barros (1923-1998), Lorca direcionou seu olhar aos detalhes da paisagem urbana, extraindo, em preto e branco, a poética da vida cotidiana numa São Paulo em constante transformação.

Descendente de imigrantes espanhóis instalados no Brás, terceiro de oito filhos de mãe costureira e pai operário, Lorca diz que a fotografia sempre esteve presente em sua vida, primeiro como hobby, depois como profissão. “Eu tirava uma foto aqui, outra ali e pronto, sem muito interesse. Mais tarde, quando me casei, emprestei uma máquina para registrar minha lua de mel. Logo que nasceu a minha filha, eu comecei a fotografar mais e a ampliar o meu conhecimento sobre a prática fotográfica. Até então eu não sabia praticamente nada”, revela. 

O talento para fotografar foi notado e incentivado pelo tio de sua esposa, o sertanista e escritor Manoel Rodrigues Ferreira. “Ele gostava muito de fotografia e rapidamente nos demos muito bem. Ele esteve no Xingu inúmeras vezes e registrou a rotina das aldeias, era experiente no assunto. Foi ele quem me encorajou para aprender mais sobre a técnica. Depois disso, comprei uma máquina melhor e passei a sair todo dia para fotografar a cidade.” 

Formado em Ciências Sociais e batendo ponto num escritório de contabilidade no centro de São Paulo, Lorca aproveitava, nos momentos em que precisava sair à rua, para fotografar o cotidiano ao seu redor. Foi num desses momentos que registrou aquela que considera a sua primeira fotografia, Revolta dos Passageiros (1947), que se tornaria um de seus trabalhos mais conhecidos. 

“Quando eu estava para pegar uma condução, notei uma fumaça na direção do Parque D. Pedro e corri para ver o que estava ocorrendo. Ao chegar ao local, me deparei com a cena dos bondes incendiados. Saquei a minha máquina, uma Welti 35mm, e fotografei a cena, por pura curiosidade. Depois soube que se tratava de um protesto contra o aumento da tarifa, de duzentos para quinhentos réis”, recorda.

Aos poucos, o ofício de contador foi cedendo espaço para a fotografia, e a grande virada se deu quando passou a frequentar, em 1948, aos 26 anos, o Foto Cine Clube Bandeirante, um reduto para amantes de fotografia na época. “O local era frequentado por pessoas de alto poder aquisitivo, diferentemente de mim, que encontravam na fotografia uma maneira de relaxar de suas vidas atribuladas. Eu estava ali para aprender cada vez mais.” 

Segundo Lorca, naquele momento, final da década de 1940, as escolas de fotografia no país se limitavam a ensinar apenas revelação de filmes, técnicas de laboratório, e a fazer cópias. “Nesse contexto, o Foto Clube foi uma verdadeira escola para toda uma geração de fotógrafos; nele, ocorriam debates sobre temas e técnicas, e cada frequentador costumava ter uma especialidade. Eu era um iniciante, estava aprendendo um pouco de tudo e começando a investir em equipamentos melhores para aprender de fato a fotografar, a criar o meu próprio estilo.” 

German Lorca percorreu todos os caminhos da fotografia. De fotógrafo amador passou a fotografar famílias, a fazer fotorreportagens para colunas sociais; depois saltou para casamentos, fotografando matrimônios importantes, entre eles o de Andrea Matarazzo com Maysa, a primeira cerimônia matrimonial realizada na Catedral da Sé, e o do poeta Haroldo de Campos (1923-2003) com Carmen de Arruda Campos. Em 1954, foi o fotógrafo responsável por documentar as celebrações do IV cente-nário de São Paulo. Suas obras integram o acervo de importantes instituições, entre elas a do MASP. 

O ritmo intenso de trabalho em casamentos o fez se distanciar da prática. “Eram três por semana, dormia pouco nessa época. Passei então a fotografar propaganda e resolvi abrir um pequeno estúdio na Avenida Lins de Vasconcelos, mas logo em seguida já pensei em um espaço maior. Por coincidência, um amigo, que me vendeu a minha primeira máquina, estava vendendo este terreno aqui. Comprei e montei esse estúdio, pois sempre gostei dessa região”, diz Lorca, referindo-se ao atual estúdio, localizado na rua Gregório Serrão. 

Para Lorca, tudo é motivo para fotografar: objetos, mobílias, pessoas… Da janela de sua casa, no Brás, apreciava a vida boêmia da cidade ao som de um ilustre vizinho. “Na esquina da minha rua existia um bar que era frequentado pelo cantor Nelson Gonçalves (1919-1998). Quando ele estava ali, todos pediam para que ele cantasse. Era lindo, um vozeirão. Eu ficava debruçado à janela ouvindo e fotografando”, conta Lorca, que fez um retrato do cantor para ilustrar a capa do disco “Só nós dois” (1949). 

Após muitos anos morando no Brás, Lorca mudou-se para a região da Vila Mariana, próximo ao cemitério. Apesar da consagração como fotógrafo publicitário, nunca deixou de fazer obras autorais. No intervalo de um trabalho, olhou ao lado e viu a imagem sinuosa do Rio Pinheiros e a fotografou para si. “Essa busca pela experimentação, ampliando a linguagem da fotografia, floresceu ainda no Clube”, diz. “Ali se formou uma nova geração de fotógrafos no país que passou a incorporar novos elementos à fotografia e a trabalhar uma linguagem mais moderna, mais subjetiva. Antes, uma foto fora de foco era considerada ruim. Nós aprendemos na raça, experimentando, e deu certo.” 

Nos diferentes caminhos percorridos na fotografia, Lorca nunca abandonou o que considera seu lema: “A fotografia acontece para o fotógrafo e ele a faz acontecer”. No flagra de um instante ou na própria construção desse instante, a sua obra sempre colocou em questionamento os limites da fidelidade ao reale a transfiguração desse real na imagem. Em uma de suas fotos premiadas, Menina na Chuva (1950) (ver ao lado), Lorca fez sua sobrinha saltar inúmeras vezes sobre uma poça d’água até encontrar o ângulo desejado. “Eu gostava de construir cenas.” Aos olhos de quem desconhece a imagem, poderia facilmente se tratar de um flagra cotidiano. 

Lorca registrou lugares como a Praça da Sé, Parque Dom Pedro, Largo da Concórdia, Parque Ibirapuera, e muitos de seus trabalhos abordam temas sociais, como Revolta dos Passageiros (1947), Malandragem (1949) e À procura de Emprego (1951). Em outros trabalhos, como Apartamentos (1952), sobressai o interesse pela geometria e a arquitetura, em contrastes num preciso jogo de luzes e sombras. 

Lorca diz que o lirismo na fotografia acabou. “Com a foto digital tudo ficou mais fácil. Antigamente os retoques eram feitos no laboratório. Eu passei para a fotografia digital aos poucos, e hoje só fotografo com ela. Mas nesse caminho algo se perdeu, aquele lirismo que a fotografia apresentava chegou ao fim no momento em que ela se tornou apenas consumo, perdeu-se aquela relação de plenitude diante da imagem”, observa. 

Nesses 65 anos fotografando São Paulo, ele acompanhou as principais mudanças. “A cidade cresceu para todos os lados, sem planejamento, tornando-se deficiente. Hoje seria muito difícil, por exemplo, fazer uma fotografia do centro vazio, pois a população aumentou muito.” 

No ano passado, quando precisou ficar em casa devido a problemas de saúde, Lorca usou o tempo para criar uma série de fotografias internas, aproveitando os jogos de luzes e sombras de suas janelas. “Trabalhei muito com a geometria, algo de que sempre gostei e sempre procurei explorar ao longo de minha carreira.” 

Em novembro deste ano, parte da obra do artista integrará uma exposição contendo mais de 280 registros de diferentes fotógrafos do Foto Cine Clube Bandeirante. Sob a curadoria de Rosângela Rennó, a mostra será inaugurada no dia 26 de novembro e permanecerá em cartaz, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), até o dia 20 de março de 2016. 

Com o estúdio na Rua Gregório Serrão desde 1950, German Lorca faz registros históricos do tempo e espaço de uma cidade ainda em construção. Fotografou a chegada do ônibus elétrico, a elegância do centro e, depois, revisitou muitos locais para observar as suas mudanças. No Parque Ibirapuera, em 1954, fez uma foto que se tornaria célebre: de uma senhora caminhando com uma criança em direção à Oca. “A mulher era a minha avó, e a criança o meu filho”, informa o fotógrafo. Aos 93 anos, Lorca diz que “ao fotógrafo, é preciso coragem”, para ver aquilo que hoje consideramos cinza: “A beleza da cidade precisa ser fotografada”.