Além das janelas

Das góticas e enjauladas janelas do antigo Hospital Psiquiátrico da Vila Mariana, os gritos dos internos aterrorizavam a vizinhança. Até que a irmandade da Santa Casa de Misericódia aceitasse o desafio do governo de implantar na edificação, construída para ser um mosteiro, o modelo inglês de tratamento. Hoje, o Centro Integrado de Atenção à Saúde Mental que, já em 2002, era um exemplo para todo Brasil,
não só alcançou seu objetivo, como também se especializou em quadros clínicos mais graves e na formação de profissionais da área, quebrando o estigma da sociedade
e da classe médica em relação à doença mental

O “Hospital dos Loucos”, como era chamado pelos moradores da região o Hospital Psiquiátrico da Vila Mariana (Rua Major Maragliano, 241/287), com certeza fez parte dos pesadelos dos vizinhos mais antigos do pedaço. Os gritos que então saíam daquelas janelas góticas, isoladas por grades do resto do mundo, apavoravam quem passava pelas redondezas, principalmente à noite. Histórias corriam pelo bairro de um ou outro interno fujão, sempre perseguido pelos homens de branco.

Por outro lado, grandes transformações e novos modelos de tratamento de saúde mental vinham sendo adotados em todo o mundo, defendendo que o doente aprisionado, drogado e exilado era irrecuperável.

Esse movimento teve início na Itália, na década de 80, com o Dr. Franco Basalli, que abriu os manicômios e proibiu novas internações. Também a Inglaterra defendia um tratamento mais humano, em que o indivíduo estivesse mais próximo da família e da sociedade.

O Hospital Psiquiátrico da Vila Mariana, que era considerado a antítese dos novos modelos de tratamento — e que recebia inúmeras críticas da classe médica —, foi desativado, em 1996, pelo governo Mário Covas. Por algum tempo, cogitou-se fazer da bela construção, que em 1930 serviu como mosteiro da Ordem Religiosa Padres e Irmãos Paulinos, um Centro Cultural. Mas o modelo inglês de tratamento, que havia sido abraçado pela Santa Casa de Misericórdia, fez com que o governo estadual lançasse um desafio à irmandade: transformar o hospital, que era um mau exemplo, em um modelo para o resto do país. O governo cederia o prédio e os recursos e a Santa Casa entraria com o projeto para implantar o novo conceito de tratamento.

Em 18 de fevereiro de 1998, depois de 2 anos em reformas, foi inaugurado o Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM), com o objetivo de proporcionar um atendimento humanizado e moderno aos portadores de transtornos psiquiátricos e psicológicos.

O interior do prédio, que antes mais parecia um presídio, com seus corredores escuros, grandes portas e grades nas janelas, transformou-se em espaços amplos, envidraçados e iluminados. Uma enorme área, com mais de 15 oficinas (teatro, pintura, atividades culturais, entre outras), foi criada no lugar do antigo refeitório do hospital, para oferecer o que havia de mais moderno em reabilitação psicossocial; desde então, o controle e a cura da maioria das doenças mentais que chegam ao Centro tornaram-se realidade.

O atendimento do CAISM (predominantemente voltado para o SUS) abrange pacientes de todas as faixas etárias que são assistidos por cinco equipes (que contam com psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, terapeuta ocupacional e nutricionista). O Centro dispõe de Pronto-Socorro, Hospital-Dia, Internação e Ambulatório.

Os pacientes não usam uniformes. Poucos são os internos, que têm seu quarto com guarda-roupas e criado-mudo. Pelas áreas, quadros nas paredes, muita luz e nenhuma lembrança do deprimente sistema que já foi um dia: não há tormentos, choques e castigos, mas atividades artísticas e passeios pelos grandes e floridos jardins. Os pacientes se relacionam bem e há um forte vínculo entre eles e as equipes de atendimento. As visitas são abertas e o objetivo do tratamento é desospitalizar (o SUS incentiva a ação por meio de verbas).

A área infantil parece mais uma escola particular e conta até com professores, e os idosos convivem como se estivessem em uma casa de repouso. Segundo o diretor do CAISM, Dr. Sérgio Tamai (que nos concedeu uma nova entrevista nesta edição), o conceito é respeitar a individualidade do paciente: “Quem entra aqui não sente um ambiente opressivo. Não somos um hospital psiquiátrico, mas um Centro que tem o pacto de oferecer ao doente qualidade de vida”, explica.

O que mudou desde então?

Há dez anos os recursos aqui na região para o tratamento da saúde mental eram poucos. Hoje, contamos com mais centros e as pessoas têm mais capacidade de conseguir atendimento fora do CAISM. Outro fator importante, segundo Dr. Tamai, é que, de 5 anos para cá,  a ANS — Agência Nacional de Medicina Suplementar —, que regulamenta os convênios, sofreu importantes transformações. “A área de saúde mental não era coberta pelos planos e passou a ser obrigatória. Mesmo quem possui um plano de saúde básico tem esse direito. O tratamento em hospital-dia agora não tem um tempo limite preestabelecido”. Além disso, o plano de saúde só cobria no máximo 12 sessões por ano com psicólogo; hoje, é possível fazer até quarenta. “Alguns planos ainda ajudam a pagar os medicamentos”, destaca Dr. Tamai.

Com a saúde mental recebendo mais atenção, as pessoas têm mais acesso a tratamentos. Isso fez com que o CAISM receba, com algumas exceções, pacientes mais graves. “Os que estão aqui são aqueles que já passaram por atendimentos mais primários, que têm quadros mais delicados e precisam de um trabalho mais intensivo. Temos muitos pacientes com casos mais graves, mais crônicos.” Para essa nova realidade, foram necessários alguns ajustes, entre eles ambulatórios mais especializados e novas técnicas de tratamento. “Há um ambulatório, por exemplo, que é para pacientes refratários — aqueles que não respondem aos tratamentos mais usuais”. Outra mudança é o aumento de funcionários e a preocupação com treinamento pessoal. “Vamos triplicar o número de residentes. Estamos formando profissionais nas áreas de psicologia, terapia ocupacional e enfermagem psiquiátrica”, adianta o diretor.

Não pensem que essas transformações aconteceram porque a sociedade está menos saudável do que há uma década. Para Dr. Tamai, ela sempre esteve doente, só que o assunto não era tratado com a seriedade merecida pelo poder público. “Atualmente se dirige algum esforço para lidar com a questão da saúde mental, o que não se fazia antes.”

O preconceito também diminuiu: a resistência da vizinhança, por exemplo, que tinha medo de que, seus imóveis próximos ao hospital psiquiátrico, se desvalorizassem, já não é problema. “A gente acabou se integrando à comunidade”, diz Tamai.

Além disso, a doença mental hoje é um grande mercado para medicamentos e profissionais da área. “Dez anos atrás era muito difícil a pessoa falar que estava tomando determinado remédio para saúde mental e não ser julgada de forma negativa. Também os estudantes, que saíam da faculdade de Medicina, faziam psiquiatria meio que por não ter outra coisa para fazer. Hoje, é uma área disputada. O que antes repelia agora atrai. “O que a gente vê é que houve uma redução desse estigma da doença mental; e nosso papel é diminuí-lo cada vez mais.”

O que era pesadelo, até para a vizinhança, transformou-se em um modelo humano e eficiente, graças a políticas públicas mais eficazes e à dedicação e competência de médicos que aceitaram o desafio proposto à Santa Casa de Misericórdia, fundada por Braz Cubas em 1543: tornar realidade o controle e a cura das doenças mentais em um antigo hospital psiquiátrico da Vila Mariana.

CAISM – Rua Major Maragliano, 241. Tel.: 3466.2100