Álbum de Retratos

Uma pequena casa, escondida entre as fachadas e luminosos que tomaram conta da rua Pelotas desde a abertura do Multishop, é uma espécie de portal do tempo, que nos leva a uma Vila Mariana secular. Ali moram Maria José dos Santos Blanco, 81 anos e Antonio Luiz Blanco, 84, que comemoram este mês 60 de casados.

Dona Zinha, como sempre foi chamada no bairro, nasceu na rua Pelotas. Seu avô materno, Constantino Galucci, morava na rua França Pinto. Era proprietário de um imenso terreno (a entrada é onde hoje está o Lar Escola São Francisco): “Ali tinha o campo de futebol Humberto I e uma fonte natural de água pura”, inicia suas memórias Dona Zinha. O campo era o mais importante da região e servia ao Clube Humberto I (na rua França Pinto), que durante a guerra foi obrigado a mudar de nome para Esporte Clube Vila Mariana.

O bisavô ganhava a vida com a bica d’água: “Ele saia com a charrete cheia de galões pelas ruas. Chegou a ganhar medalhas pela pureza da água”, conta – isto pode explicar o porquê do bairro ter a maior concentração de idosos! 

Claudina, a mãe de dona Zinha , e mais seis irmãs – ao todo eram 10 filhos – trabalhavam na fábrica de chocolates Lacta, na rua José Antonio Coelho (onde hoje está localizado o condomínio 300 / 302). “Minha mãe contava que aos domingos ela e as irmãs queriam sair e meu avô falava que era para elas passearem no terreno que chegariam no fim da tarde, cansadas!”.

Foi na Lacta que Claudina conheceu o marido, Octávio Santos: “Meu tio era gerente da fábrica e trouxe meu pai de Portugal já empregado”. Claudina e Octavio se casaram em 1924 e foram morar na rua Pelotas (próximo a Dr. Amâncio de Carvalho), onde Dona Zinha nasceu, em 1925.

Com os pais e o irmão Manuel – “temos os nomes dos avós paternos” –, Dona Zinha morou em várias ruas do pedaço: Major Maragliano, Morgado de Mateus e Coronel Oscar Porto: “As casas, ao lado da Lacta, serviam aos funcionários da fábrica”, explica. Aos oito anos veio morar em uma casa alugada na rua Pelotas, onde vive até hoje. “Eram cinco sobrados iguais construídos em 1914. Aqui era só terreno e minha avó dizia que iríamos morar no meio do mato!”.

A Pelotas, nesta época, era uma rua onde viviam alemães e portugueses: “Era toda de terra e tinha uma chácara de um casal português onde pegávamos as hortaliças. Estudava numa escola particular aqui na rua mesmo e quando chovia, minha diversão era pular nas poças d’água. Próximo à rua Humberto I havia um córrego que descia até o Parque Ibirapuera”.

Quando Constantino Galucci morreu, a bisavó Ângela resolveu vender o imenso terreno e dividir a herança com os 10 filhos. Comprou uma casa para morar na rua França Pinto e sua mãe conseguiu comprar a que morava, por 15 contos de réis: “A dona da casa dizia para o filho que antes de morrer queria deixar a casa para minha mãe”. A doce lembrança da primeira infância era quando a mãe trabalhava para a Lacta em casa com suas tias embrulhando doces: “Uma delícia ajudá-las. Os chocolates quebrados, eu comia!”

Dona Zinha conta que ainda era pequena quando começaram a construir a Arteb, em frente de sua casa. Lembra-se, também, dos Lustres Pelotas (onde hoje é o Sesc VM) e, vizinha, a fábrica de panelas Lares: “A fábrica de Artur Eberhardt foi inaugurada em 1934 e trouxe muito movimento, fizemos muitas amizades”.

E assim Dona Zinha foi crescendo, sem sair da Vila Mariana, pois toda sua família e amigos viviam no bairro. Um dia, já moça, foi a um batizado da filha da amiga, em uma das vilas da rua Pelotas e conheceu seu Antônio: “Morava na rua José Antonio Coelho e nunca havíamos nos encontrado!”, conta o marido.

Seu Antônio também participa suas lembranças da região: “Quando era criança pescava no lago do Ibirapuera, caçava passarinho e comia muita fruta: jabuticaba, goiaba, amora, maracujá, uvas, de dois tipos, branca e rosada”, conta. Quando conheceu Dona Zinha, trabalhava numa loja na rua Dr. Amâncio de Carvalho.

Casaram-se em 1946 : “Não saí da casa, era costume a filha mais velha casar e continuar morando com os pais que, para nos receber, fizeram uma grande reforma”. Seu Antônio, então, foi trabalhar na loja de fábrica dos Lustres Pelotas: “Meu irmão e sobrinho trabalhavam na Arteb”.

Em 1948, nasceu a filha Esmeralda, hoje professora de História da USP. As mulheres tinham filho em casa com Geralda, a parteira que morava na Lins de Vasconcelos. “Fiquei muito impressionada com dona Geralda. Ela me disse o dia e a hora que eu ia ter minha filha e chegou em casa no meio da madrugada, conforme havia previsto”, lembra.

Esmeralda também conheceu seu marido no bairro, que morava numa travessa da (adivinha!) rua Pelotas: “A mãe de meu genro mora até hoje na mesma casa”, diz Dona Zinha.

Na década de 80 a Arteb foi desativada e, em seguida, os Lustres Pelotas. “No começo da década de 90, fomos informados de que os antigos sobrados ao lado da fábrica desativada tinham sido comprados pela Arteb para ser um shopping: “Se um dia me falassem que eu ia ter um shopping em frente de casa não ia acreditar!”, diverte-se Dona Zinha. Em 1992 foi aberto o Multishop: “Quando ele começou a funcionar, veio um vizinho e me disse: perdemos o sossego! Não concordei, pois sempre gostei de movimento”. Mas com o Multishop vieram outras lojas, bares e muito barulho: “O que fez com que a maioria mudasse daqui”. Já tiveram ofertas para vender a casa: “Queriam dar em dinheiro vivo, mas estamos tão acostumados aqui…”, justifica.

A casa de Dona Zinha e seu Antônio foi espremida entre duas lojas, uma de couro e a outra, atualmente para alugar . “Ela já foi restaurante, instituto de beleza, escola de música, de dança… Nem imagino o que vai ser agora!”.

Mas o casal é do tipo do “deixa para lá”. “Eu não ligo, bato-papo com todo mundo”, conforma-se seu Antonio. “Os motoristas de táxi são ótimos!”, constata Dona Zinha, que agüenta até os rapazes que param diariamente em frente de sua casa para vender pizza: “Eles pelo menos trazem o seu próprio cesto de lixo”.

É claro que, às vezes, alguma coisa incomoda: “Com o lixo que jogam na árvore aqui na frente”. Aliás, é justamente a árvore o motivo da maior irritação: “Ela está podre, cheia de cupim. Tive que trocar todo o batente da porta!”, branda Dona Zinha. De resto, apenas a chateação de não poder mais matar a saudade do bairro caminhando: “As ruas estão muito esburacadas, andamos pelo Sesc”.

A vida de Maria José dos Santos Blanco e Antonio Luiz Blanco e seu álbum de retratos revelam uma Vila Mariana perdida no tempo. Ao passar pelo portal, escondido em meio ao que virou a rua Pelotas, encontramos mais do que uma bela matéria. Encontramos poesia e bem-estar: “Não temos do que reclamar. Temos uma filha e um genro maravilhosos. Três netos lindos! Agradeço todos os dias tudo o que tenho”, emociona-se Dona Zinha. Dos olhos de seu  Antônio surge uma lágrima, mas como  sempre diz…“Deixa para lá!”.