A Sinfonia Artística de Astrid Salles

Fascinada pelos grafismos indígenas há mais de trinta anos, Astrid Salles, artista plástica e moradora do pedaço, encontrou na alma das raízes da arte brasileira a inspiração para conceber suas obras de arte. Primeira mulher a tocar trompa no país, sua obra sempre esteve fortemente ligada à música e às artes plásticas.

Em seu apartamento, na Rua França Pinto, onde reside e mantém seu ateliê, Astrid Salles não esconde o fascínio pela cultura indígena. Basta percorrer o ambiente para se surpreender com dezenas de obras e objetos tribais compondo a decoração. São máscaras, colares e instrumentos de diferentes tribos brasileiras estudadas pela artista. 

Obcecada por criar uma arte genuinamente nacional, a vizinha foi buscar nos grafismos indígenas a essência para compor sua própria linguagem visual, em obras realizadas com extremo cuidado artesanal e repletas de simbologias. Dessas influências resultaram os trabalhos que estão na exposição “Pinturas e Colagens” que a artista acaba de inaugurar na Loja de Arte, da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. 

Sob a curadoria de José Carlos Honório, a mostra reúne trabalhos criados a partir de diferentes técnicas e divididos em colagens e pinturas abstratas, cujos grafismos de tribos do Xingu norteiam as obras escolhidas a dedo por Astrid. “Dei preferência a obras bem coloridas e pequenas, já que a ideia é que elas dialoguem com os livros”, adianta Astrid. 

Nascida no berço de uma família musicista – o pai fazia serenatas ao violão e a mãe tocava bandolim —, Astrid Salles sempre achou que seu destino não  poderia ser outro além da música. “Sempre achei que seria musicista, afinal estudei mais música do que pintura. Aos seis anos de idade, incentivada por meu  tio, comecei a estudar piano, e aos 20 já tocava percussão na Orquestra Sinfônica da Escola de Música de Piracicaba Dr. Ernst Mahle. Na verdade, não fui eu  que escolhi a pintura, foi ela que me escolheu”, diz Astrid. 

 As primeiras pinceladas foram feitas na juventude, em criações impressionistas feitas a óleo e inspiradas nas paisagens naturais de sua cidade natal. “Reunia-  me com outros amigos para pintar as paisagens que faziam parte do meu repertório de vivências, entre elas o Rio Piracicaba”, relata. 

 Mas foi com a mudança para a cidade de São Paulo, em busca de técnica, que a arte deixou de ser um hobby. Em 1959, inicia o curso de Artes Plásticas, na  FAAP. “O artista precisa ter uma base acadêmica para depois se modernizar e encontrar sua linguagem. Não adianta começar com rabiscos se não tiver a  compreensão da técnica”, observa Astrid. 

 No início da década de 1970, as paisagens exteriores que marcaram suas primeiras telas cedem lugar para uma arte existencial. “As pinturas que integram  essa fase, que denomino Ruínas, já trazem mudanças. Nelas já começo a pintar com acrílico e a estabelecer intervenções com colagens, tecido e aniagem de  saco”, explica a artista. 

 Mas foi na década seguinte que Astrid Salles encontrou o que tanto almejava para sua arte: os grafismos indígenas, tema que estuda até hoje e que não  pretende abandonar tão cedo. “Em 1984, momento em que estabeleço contato com os índios do Xingu e, por incentivo do meu amigo e sertanista, Orlando  Villas Bôas, mergulho em um estudo profundo sobre os grafismos de diferentes tribos, que são riquíssimos e extremamente minimalistas”, destaca. 

 Astrid dividiu a casa e o ateliê com o marido e renomado artista plástico, Braz Dias, falecido em 2012. Juntos, fizeram inúmeras exposições no Brasil e no  exterior. “Meu trabalho é composto por terra e sol, com predominância de muita luz. O Braz era mais entardecer. Ele sempre gostou do momento que  chamava de mágico, que é o fim do dia e o começo da noite. Enquanto ele buscava o feminino, representado pela lua, eu sempre busquei o masculino, que é o  sol”, observa Astrid. 

 Atualmente, com trabalhos que trazem representações geométricas e grafismos, Astrid encontrou seu estilo. “A abstração foi um caminho natural em minha  pintura. No começo eu até desenhava o rosto do índio, o cocar, tinha mais referência do objeto figurativo, mas isso foi ganhando novos contornos no decorrer  dos anos. O grafismo indígena é muito rico, há muito para se conhecer ainda. Eu não uso todos, apenas alguns, de acordo com a necessidade do momento”,  conta Astrid. 

Premiada no Brasil e no exterior, onde realizou exposições em países como Suíça, China, Alemanha, Portugal, entre outros, Astrid encontra na natureza os materiais que utiliza para criar suas obras, como pigmento natural, colhido na terra, papelão, parafina e areia. “Sempre procurei trabalhar com materiais criados a partir de experimentos”, ressalta a artista, que, apesar de morar há pouco tempo no pedaço, possui relação de longa data com o bairro. “A Vila Mariana sempre esteve em nossa história, do Braz e minha, pois ambos sempre mantivemos profundas relações familiares com o bairro”, revela Astrid. 

Baixe astrid_trompete site.JPG (86,8 KB)Primeira mulher a tocar trompa no país, Astrid Salles mantém uma relação afinadíssima com suas raízes musicais, uma paixão que se encontra em constante diálogo com  suas pinturas. “Uma coisa complementa a outra e, mesmo que de maneira sutil, a música sempre refletiu em minha pintura”, confessa. 

 O pioneirismo em tocar trompa, instrumento incomum para uma mulher, na época, e motivo de piadas que Astrid levava na brincadeira, rapidamente conquistou a  admiração do maestro alemão Ernst Mahle, que, fascinado pela coragem da jovem musicista, compôs e dedicou a ela, em 1961, um concertino para trompa e orquestra, que  Astrid executou como solista em inúmeros concertos. 

 Em 2003, eleva ao máximo a relação entre música e pintura em uma série de grafismos musicais inspirados nas partituras do compositor e amigo Paulinho Nogueira. Um ano  mais tarde, homenageia a cidade de São Paulo com a série “grafismos paulistanos”, interpretando, em pinceladas, partituras que se tornariam hinos à cidade da garoa. “Por  meio do grafismo transformei em linguagem plástica a melodia extraída das partituras de artistas como Adoniran Barbosa, Caetano Veloso, Paulo Vanzolini, entre outros. Foi  um trabalho muito árduo, pois é preciso compreender as pausas e melodias para transformar em pintura”, conta. 

 Para Astrid, música e pintura representam sua vida. “São as duas coisas que me mantém viva,”, define a artista, que, tal como no início de sua carreira, entende a inspiração  como sinônimo de trabalho e dedicação. Nas pausas entre uma pincelada e outra, sempre encontra um tempinho para arrancar uma melodia do piano, e, quando mergulha  novamente em suas telas, as pinceladas são conduzidas por uma música que deixa ao fundo, quase sempre Bach ou um blues. Fora isso, Astrid Salles sonha em ter apenas uma única coisa: “mais tempo para me dedicar à pintura”. 

Exposição: Astrid Salles – Pinturas e Colagens 

Local: Loja de Arte da Livraria Cultura. Av. Paulista, 2073 

Visitação: Até 31 de julho, de segunda a sexta, das 9h às 22h, e aos domingos, das 12h às 20h