Quem tem medo do Boitatá?
O boitatá é uma lenda indígena brasileira que chegou a ser descrita pelos primeiros jesuítas colonizadores e tornou-se parte integrante de culturas regionais. A gigante serpente de fogo que devora viajantes incautos estimulou várias crendices de proteção durante passeios noturnos, desde permanecer imóvel ou enlaçar a criatura para sobreviver.
No entanto, depois do crescimento da cultura popular, a ciência simplesmente veio e explicou que o fenômeno que deu origem ao mito era mais conhecido por fogo-fátuo. As luzes estranhas próximas a regiões de pântanos existem, porém nada mais são do que reações químicas provocadas pelo contato de gases comuns nesses locais como o metano e a fosfina com o ar. Algo perfeitamente natural e compreensível. Uma devida explicação racional que ocasiona o fim de um mistério. Mas isso realmente representou o fim do boitatá?
Shakespeare já dizia que havia mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. A conclusão científica e lógica selou o caso, mas a criatura ainda vive firme no imaginário popular. Uma lenda secular não morre apenas com a publicação de um artigo acadêmico.
Até porque muitos mistérios do universo ainda não podem ser explicados meramente pelo pensamento racional. Moramos em um pálido ponto azul que chamamos de Terra e conhecemos muito pouco do espaço ao nosso redor.
Na verdade não sabemos de tudo nem dentro da própria Terra: os oceanos mais profundos seguem inexplorados, matas ainda não desbravadas guardam várias espécies ainda nem catalogadas. E até com os bichos que já conhecemos também ainda somos surpreendidos: animais que deixam de ser avistados por um certo período de tempo são considerados definitivamente extintos pela ciência. Mas será que isso é real?
Então eis que aquele bicho que só se pensava encontrar nos livros de história resolve aparecer de novo depois de 20, 50, 100 anos do último avistamento. Foi o que aconteceu com a Tartaruga Gigante de Galápagos de Fernandina: a última vez que havia sido vista foi em 1906, era uma extinção praticamente certa. Até que em 2017, 111 anos depois, conseguiram achar um indivíduo da espécie novamente. Claro que o animal ainda corre sério risco de extinção devido à escassa população, mas agora a esperança que já havia acabado pôde se renovar repentinamente. E casos semelhantes continuam ocorrendo como para o leopardo-nebuloso, o canguru de Wondiwoi, a abelha Wallace e o taguá, dados como extintos e que “ressurgiram” recentemente.
Seriam fantasmas? Programas de clonificações clandestinas? Como uma tartaruga gigante com mais de 50 cm de carapaça não foi vista por mais de um século? Mistério…
Por isso, o pensamento racional também possui seus limites. Nem sempre ele vai enxergar todas as tartarugas, leopardos ou mundos alternativos que existem por aí. Pode até tentar deduzir com alguma base estatística (se 0 tartarugas foram vistas em 110 anos, presume-se que essa tartaruga deixou de existir), mas daí já entra a questão da incerteza. E onde mora a incerteza pode morar qualquer coisa. Inclusive um enorme e flamejante boitatá.
Pois a lenda de uma criatura vai muito além da criatura em si: qualquer mito ou lenda disseminado por diferentes sociedades fazem parte de uma criação arquetípica conforme os hábitos e costumes de certa população. Não é à toa que a maioria dos monstros imaginados por gerações antigas habitavam cavernas escuras, bosques densos ou lagos profundos.
O conceito do monstro surge a partir do medo humano, que alerta para o perigo de frequentar lugares assim e encontrar animais silvestres ameaçadores. O monstro imaginado em si pode não existir, mas a sua figura impregnada em nossa mente ajuda a prevenir perigos reais de se defrontar com lobos, ursos ou animais peçonhentos pelo caminho.
O boitatá também possui uma função arquetípica: a questão da defesa do meio ambiente (comum a outros membros do folclore como o curupira e a caipora), pois o principal alvo do boitatá seriam aqueles que invadissem as matas à noite para a realização de queimadas.
É isso que faz com que lendas sobrevivam mesmo quando são desmentidas na prática. O seu significado é tão amplo quanto histórias clássicas ou contos de fadas que servem continuamente de lição para o progresso da humanidade a qualquer época.
Não precisamos ter medo do boitatá, mas precisamos aprender com ele. Enquanto a mensagem que ele passa permanecer válida, sua lenda também continuará pulsando em nossos corações.
Fontes: