Graffiti na Av 23 de maio — o maior da América Latina
Por Ricardo Tatoo
“Enquanto houver gente, haverá cidades. Enquanto houver cidades, haverá muros. “O povo escreve a história nas paredes.” Esse trecho de poema é também o título do primeiro livro de Mario Lago, escrito em 1948, O Povo Escreve História nas Paredes. Ator de novelas, compositor de marchinhas de Carnaval (Amélia que era uma mulher de verdade…), Mario Lago traduz a realidade das cidades, onde, desde os tempos antigos, os romanos já deixavam recados nos muros com os mais variados temas — algo como um mural de mensagens.
E o que o muro da Av. 23 de Maio tem a ver com o poema de Mário Lago? A partir deste trecho do livro entendo mais a cumplicidade e combinação que o graffiti e a arte urbana compõem com a cidade, ainda mais em São Paulo, megalópole e berço do graffiti no Brasil.
Se acatarmos a ideia de que “enquanto houver muros algum tipo de mensagem será escrita em alguma parede, inevitavelmente”, isso facilita a compreensão de que o muro é um suporte que nos acompanha em toda a cidade, quase como uma sombra. Vale, sim, a arte urbana interagindo com a cidade. Mais cor no cinza dos concretos, por favor!
Sou grafiteiro desde o final dos anos 80, e boa parte do amor pela arte urbana vem de grafitar em Sampa. Neste tanto de concreto, há uma poesia. Resta saber como decodificá-la.
Não é de hoje que a cidade e seus representantes flertam com a arte urbana, dos artistas de rua que cantam, dançam, fazem mágicas, malabares, tocam e brincam com a cidade, sempre em movimento. Algo circense de se apresentar a todos, expor-se e interagir com a cidade. VAI além das quatro paredes das galerias e salas fechadas.
Normalmente temos dois pontos de referência na cidade: o ponto de partida e o ponto de chegada — origem e destino. E o que fazer nesse vácuo chamado rua? Nesse vazio entre os dois pontos? Se pararmos para pensar, perdemos um tempão no transitar das ruas, no qual nada importa senão o ponto de chegada. No final do dia, contabilizamos horas de permanência nesse vácuo, vazio que não faz sentido por tanto tempo de nossos dias. Cabe à arte minimizar esse vácuo urbano.
2015 começou mais colorido para cidade. Aos apaixonados pela arte de rua, graffitis & CIA, o presente de ter a Av. 23 de Maio com mais de 70 muros e 15 mil metros quadrados de arte colorindo o cinza é como ter um álbum de figurinhas gigante! A realidade virtual fez dos graffitis uma mania em que clicar e compartilhar arte de rua pode ser o formato moderno de colecionar figuras e apreciar arte.
Mais de 400 grafiteiros — muitos grandes representantes do movimento atual em São Paulo e no exterior, outros mais influentes na periferia e, ainda, outros tantos amantes e viventes da arte — compuseram um painel, referência como o maior da América Latina.
Falei de Mário Lago e agora relembro o grande Velho Guerreiro Chacrinha, que disse: “vim ao mundo para confundir, e não explicar”. A arte de rua é controversa, polêmica, decorativa e audaciosa. Tudo ao mesmo tempo. Muito natural que não agrade a todos, mas ao expressar os mais variados estilos de arte urbana, como o graffiti, o graffiti com stencil, os cartazes lambe-lambe, o rolinho e a tinta látex, os polêmicos bombs e tags (assinaturas) etc… ao se apropriar do espaço urbano e colorir o cinza frio da cidade, faz-se um caminho VERDADEIRO, que em São Paulo existe desde os anos 70, com os mestres Alex Vallauri e Maurício Villaça, Ozi, Rui Amaral, John Howard, Celso Gitahy e mais uns seis artistas de vanguarda — os precursores da arte urbana no Brasil.
Vale, sim, a polêmica. Vale, sim, suprimir o cinza com cores. Vale a reflexão de qual é o papel da arte na vida de todos e na saúde da cidade.Confundir ao invés de explicar pode criar novas reflexões. Uma nova visão e respeito com o meio em comum. Costumamos apreciar o belo mais do que o cinza.
Quem gosta de graffiti tem outra visão da cidade. Acostumado a apreciar as artes dos muros, encontra no tédio do caos urbano mensagens, códigos, estilos e cores incríveis em lugares degradados, que nos perseguem quando estamos presos no trânsito, esperando o ônibus e no tal vácuo entre os dois pontos.
A partir do momento em que reconhecemos um ou outro artista por suas obras, faz-se um mapeamento das artes, e o que é um grande tédio se torna menos árduo ao buscar as artes nos muros, ultrapassando o limite da monocromia urbana.
Tudo que é novo causa estranhamento. Vale a nós, moradores da Vila Mariana e região, experimentarmos o impacto da arte urbana e darmos uma chance aos nossos olhos.
Experimentar e compartilhar, com filhos, sobrinhos e amigos, um jogo sobre o qual graffiti agrada mais é um exercício criativo. A arte de rua é para todos, e todos fazem parte dela.
Enquanto existir seres humanos haverá cidades e seus muros, que esses sejam grandes painéis de uma grande galeria a céu aberto, sim!
Por uma cidade mais colorida, mais limpa e criativa!
*Ricardo Tatoo é arte educador, diretor de arte,
artista urbano e morador do pedaço.