O outro lado do Muro
Esse é o nome da ação criada pelo vizinho Ricardo Fraga Oliveira que busca refletir sobre o que queremos da cidade. O que começou solitariamente tornou-se uma intervenção coletiva, mobilizando a comunidade na discussão sobre o uso e ocupação do solo.
As transformações do bairro impõem à comunidade uma qualidade de vida longe da ideal. A vizinhança assiste impotente à construção de novos edifícios, o verde e a terra desaparecendo, o aumento de número de carros em nossas vias — cada vez mais caóticas —, e tudo vem a piorar com a especulação imobiliária, que aumenta o preço do metro quadrado na medida em que diminui a relação de vizinhança. Como bem observou Paulo Mendes da Rocha em recente entrevista à Folha de São Paulo “parece que o governo está de mãos atadas em relação à cupidez do mercado”
Por outro lado, solitariamente, algumas pessoas tentam fazer a diferença, mostrando que, sim, é possível provocar uma reflexão sobre alternativas de como fazer nossa vida melhor, com ações que modifiquem o modelo predominante.
Quem não entendeu, basta conhecer o engenheiro agrônomo e advogado Ricardo Fraga Oliveira, 47 anos — morador da rua Dr. Mário Cardim —, que está iniciando uma saudável revolução na forma da vizinhança ver a cidade. “Voltei de viagem e deparei-me com o início da construção de um grande empreendimento no famoso terreno da antiga fábrica de Ceras Record”, conta Ricardo.
A área em questão é o terreno de 9.356 m2, que margeia a av. Cons. Rodrigues Alves, a rua Otávio Morais Dantas e tem uma saída na rua Humberto I. O local abrigou a fábrica, desativada no início dos anos 60 e demolida, curiosamente, três dias depois de uma matéria publicada no Pedaço da Vila, em setembro de 2004.
O porte do projeto da Mofarrej Empreendimentos causará um grande impacto na vizinhança. Serão três torres de 26 andares cada (dois apartamentos de 246 m2 por andar), mais de 600 vagas na garagem, playground, quadra de tênis, piscinas coberta e descoberta, fitness, espaços hobby, jovem e gourmet, salão de festas adulto e infantil, brinquedoteca e até praça de boas vindas — para os proprietários dos apartamentos.
Ricardo teve a vontade de “expiar sua relação com o espaço”, o último, dessa proporção, que restou no pedaço. “Eu sempre tive um carinho muito grande por esse terreno e imaginava um uso diverso do que está sendo anunciado”, explica.
Num desabafo, propôs uma reflexão sobre a forma como a cidade é apropriada, o modelo de verticalização que vem se impondo nela, as consequências, e o ideal de vida que imaginamos. “Pensei: por que a sociedade pouco se mobiliza na preservação de espaços tão significativos como esse, com características tão peculiares?”.
Sozinho, iniciou uma intervenção coletiva. “Mal sabia que o que resolvi fazer tinha esse nome”, brinca. Com uma escada, duas cadeiras, uma lousa branca, canetas coloridas e uma máquina fotográfica, decidiu captar manifestações a respeito do que é uma cidade, no (ainda) muro da fábrica ao longo da av. Cons. Rodrigues Alves.
Durante horas, ele observa o movimento, varre a rua, e chama as pessoas a olharem o outro lado do muro, onde o terreno está escondido. Depois as convida a manifestar seus sentimentos na lousa branca: “Já são 68 horas de intervenção!”, informa.
O desenho ou a escrita é posteriormente fotografado para ser exposto no mesmo muro, aos sábados, das 10 às 17h: “A sensação das pessoas é de perda, de dor, sem saber a quem culpar”, observa o vizinho. Embora haja esse sentimento, as mensagens são sempre de esperança: “O que percebo é que as pessoas gostariam que os terrenos da cidade tivessem outro uso. Vejo que do outro lado do muro há uma esperança. Percebi, com a intervenção, que isso não acontecia só comigo!”.
O que começou como um desabafo ganha forma a cada sábado e inicia uma mobilização entre os moradores. As lembranças de vizinhos mais antigos, que revelam da existência de um corpo d’água que passava pelos arredores (sob a rua Maestro Callia está o córrego Boa Vista), reacendeu a esperança. Se isso for confirmado, poderá até provocar uma inimaginável reviravolta.
“A existência de um córrego pressupõe a necessidade de uma faixa de proteção ao longo dele, conforme exigências do código de obras e edificação e do código florestal”, explica o engenheiro agrônomo. Foi publicada no Diário Oficial do dia 30 de julho (pág.25) a informação de que um dos alvarás foi suspenso. “Foi protocolada na Secretaria do Verde e do Meio Ambiente uma solicitação de estudo sobre a possível existência de um córrego no local. Esse foi o motivo da suspensão do Termo de Compensação Ambiental, até esclarecimentos do assunto”, explica a assessoria da SVMA.
A intervenção, que teve início com Ricardo, continua. Mas não mais solitária. “Não estou mais sozinho no muro. Conheci tanta gente que tem a mesma aspiração que eu, que pensa em uma cidade melhor… Tanta gente legal: Paulo, Artur, Minna, Júlia, Ivens … e tantos outros!”, dentre as mais de 600 pessoas que presume ter conversado.
Por meio das manifestações individuais — em cada desenho, em cada pensamento — já é possível imaginar de forma coletiva a cidade que gostaríamos de ter. “Saber qual é o sentimento de outras pessoas sobre o assunto me entusiasmou a prosseguir com a intervenção, agora, sim, coletiva!”, comemora Ricardo.
Na página http://www.facebook.com/pages/O-outro-lado-do-Muro é possível reunir as fotos das manifestações dos moradores do bairro, e ver a esperança transformar-se em arte de viver! Participe: durante os sábados de agosto, das 10 às 17h, na av. Cons. Rodrigues Alves (ao lado do Banco do Brasil).