Doce espetáculo
O ano de 1972 corria solto. A efervescência cultural do 70 já tinha trazido para o Brasil a peça HAIR, balançando todas as estruturas da sociedade convencional. O Teatro Brasileiro já revelava dramaturgos revolucionários como Gianfrancesco Guarnieri, Fauzi Arap e Zé Celso Martinez Correa e Plinio Marcos.
A Vila Mariana, sempre pujante, entra no circuito teatral com a abertura do improvisado Teatro da Lacta, erguido nos galpões ora desocupados da antiga fábrica de chocolates na Rua José Antonio Coelho, cedida pelo seu proprietário, que nessa altura dos acontecimentos era o ex-Governador de São Paulo Adhemar de Barros. A fábrica havia se mudado para as novas dependências no bairro do Brooklin e os galpões do pedaço estavam vazios.
Eu e o Levy vínhamos de uma temporada coautoral e bem mambembe com a peça “O Homem, a mulher e a flor”, uma colagem de textos de Saint Exupery. Com essa peça, viajamos o país com um elenco de sonhadores e a coragem dos saltimbancos.
Numa das voltas para a nossa querida Vila Mariana, num fim de tarde, passando pela Rua José Antonio Coelho, de repente, o cheiro de chocolate no ar, mesmo com a fábrica fechada. Aliás, o cheiro de chocolate durou anos, mesmo depois da fábrica da Lacta se mudar.
Pode parecer estranho, mas alí naquele momento, nós conseguimos perceber que o Teatro e o chocolate tinham tudo a ver. Paramos, o portão estava aberto. Abrimos e dentro se descortinou uma das mais belas imagens que um ator sonha em ver. No galpão vazio da fábrica da Lacta estava sendo montado um palco de teatro. Cenários, madeira, telas, holofotes, gente trabalhando. Uma imagem inesquecível. Alí, naquele galpão improvisado, começava a se montar uma das primeiras peças teatrais “tipo musicais” feitas no Brasil, A Missa Leiga, do dramaturgo Chico de Assis.
Ao ver aquelas imagens, imediatamente nos lembramos de quando éramos crianças e tivemos a oportunidade de ver a fábrica da Lacta funcionando – numa visita com a escola – com muitas mulheres trabalhando nos diversos setores que iam da confecção dos chocolates até sua embalagem em caixas elegantes e laços de fita brilhantes.
Realmente, ver aquilo foi uma mistura de gostos, sabores, imagens e lembranças. De um lado a fábrica e sua manufatura de doces, maquinas, empacotadeiras, peruas de transporte, produtos diversos e, do outro lado, palco, plateia, palavras, ações, cânticos, danças, revolução social, diálogos, monólogos e dramaturgia.
A fábrica da Lacta teve uma história linda na Vila Mariana. Em 1912, um grupo liderado pelo cônsul suíço Achilles Isella, que havia desembarcado no Brasil em 1891 vindo da Argentina, criou a Societé Anonyme des Chocolats Suisses de S. Paulo com o objetivo de fabricar chocolates no país.
O grupo comprou um amplo galpão na Rua José Antônio Coelho, bem em frente à Rua Humberto I, na Vila Mariana, e montou ali a primeira fábrica da Lacta no Brasil, dando emprego a muitos vilamarianenses. Por estar próximo a fábrica e já ser uma rua comercial, o grupo montou na rua Domingos de Moraes uma loja para a venda dos chocolates que fabricava
A Lacta era tão moderna e importante que foi o anunciante que apareceu no primeiro anúncio luminoso da cidade, tão grande que atravessava a rua XV de Novembro, no centro da
cidade, no movimentado trecho entre o Largo do Tesouro e a rua Anchieta.
A mistura do chocolate e do Teatro da Lacta durou alguns anos na nossa juventude de Vila Mariana, onde pudemos nos divertir com a arte de representar e cantar, até que os Deuses do Teatro entendessem que era hora de fechar suas portas.
O cheiro de chocolate e aquele palco jamais sairão da nossa memória. Mais tarde, o Levy participou do elenco da peça “A Missa Leiga” como ator e cantor, sob a direção de Adhemar Guerra, com Armando Bogus no papel principal. Eu segui para os palcos da música, do teatro e dos discos.
O Teatro da Lacta — um palco improvisado na Vila Mariana — teve papel fundamental na formação de grandes atores e atrizes como Everton de Castro, Buza Ferraz, João Acaiabe, Cristina Pereira, João Carlos Vicci, Luis Damasceno, Rosa Maria, Oswaldo Mendes, Walter Cruz, entre tantos outros. A direção musical foi de um vilamarianense querido que é o maestro Adilson Godoy.
Até hoje, quando passamos na esquina da José Antonio Coelho com a Humberto I, eu e o Levy nos cumprimentamos como nos saudamos entre atores — com aquela palavra que é o símbolo do sucesso em teatro no mundo. “Merda”. Merda, Levy. Merda, Cacá. Merda, Teatro da Fábrica da Lacta na Vila Mariana. Merda.
* As fotos misturam um pouco das emoções que colocamos no texto com muito amor por chocolate, teatro e a nossa Vila Mariana: a fachada da fábrica, peruas transportadoras, mulheres trabalhando, vitrines expositoras, anúncio luminoso, Adhemar de Barros e funcionários e atores da peça A Missa Leiga.