Sentido de Vida
Maria Hecilda podia viver como uma elegante viúva do começo do século, mas isso era pouco para uma enérgica senhora que destinou sua vida à luta para libertar os deficientes físicos. Pessoas fazem a diferença. Constroem e destroem, mo-tivadas pela fé, necessidade, amor ou ideal. Com dona Maria Hecilda não foi diferente. Ela poderia continuar, em 1932, a ser apenas uma fazendeira de Pindamonhangaba, cuidando da filha de três anos e da terra deixada pelo marido, que morreu quando tinha apenas 29 anos. Mas isso era pouco para a severa e determinada jovem senhora que vendeu sua fazenda e veio para São Paulo a procura de um sentido de vida maior.
Quem nos conta essa história é Clélia Salgado Teixeira, filha de Maria Hecilda Campos Salgado, fundadora do Lar Escola São Francisco. “Mamãe não gostava da vida dos passeios e clubes e, levada pela amiga Pérola Byington, começou a trabalhar na Cruzada da Infância”, revela. Como voluntária, visitou o Abrigo de Menores – hoje Febem – e teve a curiosidade de conhecer os meninos que ficavam num lugar chamado pelos internos, de cafua.
“Ali, em quartos fechados, treze aleijados estavam confinados e eram tratados com desprezo pelos demais. Mamãe ficou penalizada”, relembra Clélia. A partir daquele momento, Maria Hecilda não mais descansou. Contratou professores para dar aulas aos meninos abandonados que, em muito pouco tempo, começaram a ganhar força e tornar-se um problema para o diretor da instituição, que não tardou a apresentar a Maria Helcida duas hipóteses: – ”Ou a senhora não vem mais aqui ou leve os meninos pra onde quiser!”.
Passado o susto, Maria Hecilda saiu à procura de uma casa para alugar:”Vendemos a fazenda muito bem, sem pechinchas e mamãe utilizou uma porcentagem dessa quantia para comprar uma casa onde pudesse instalar os meninos e trazer a professora”. Ganhou, como aliado, o então secretário da Justiça que a ajudou a montar a ca- sa, localizada na rua Castro Alves, que logo se apresentou inadequada, com seus três andares, para abrigar os novos moradores. Então, resolveu mudar-se para a Vila Mariana, na rua França Pinto, 783, onde hoje é o Bazar Samburá. O centro permaneceu ali por alguns anos, enquanto era construído, com a ajuda da população, um local próprio para ser um centro de habilitação, num terreno doado pela Prefeitura – rua dos Açores, travessa da av. República do Líbano.
Durante esse período, Maria Hecilda reservou o pouco tempo que lhe restava para os estudos e foi se especializando: “Logo depois da guerra, ela ganhou uma bolsa de estudos da ONU e ficou por seis meses nos EUA, país adiantadíssimo na área de reabilitação”, fala Clélia apontando um dos certificados, entre dezenas de diplomas e títulos pendurados na parede da grande sala onde ela trabalhou até os 90 anos. Hoje, o Lar Escola São Francisco atende diariamente a 1.600 pessoas. No local, os portadores de deficiências físicas recebem tratamento nas áreas médicas de ortopedia, fisiatria, neurologia, reumatologia, gerontologia e pneumologia e nas áreas paramédicas de Odontologia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Psicologia, Psicopedagogia, Terapia Ocupacional e Enfermagem.
Além de possuir uma escola de primeiro grau, para crianças de 4 a 16 anos, oficina ortopédica capacitada para confeccionar órteses e próteses, oficina terapêutica, ambulatórios e serviço social. O critério que norteia o tratamento é a constatação de que a deficiência física seja passível de processo de reabilitação. Tudo isso foi construído graças à determinação e severidade de uma mulher – única filha de seis irmãos que, sem consentimento da família para estudar, freqüentava a escola escondida: “Mamãe era muito enérgica e sempre que a criticava por sua dureza, ela dizia: – não estou fazendo carreira para Santa!”, relembra Clélia, que herdou de Maria Hecilda a Presidência do Lar Escola São Francisco e que confessa não ter a mesma firmeza da mãe: “Não sou determinada como minha mãe, mas realizei seu sonho: um convênio com a Escola Paulista de Medicina”.
Durante toda sua vida, Maria Hecilda, por onde passava, teve que dar a mesma resposta : “não, não tenho um filho deficiente”. Sua motivação surgiu do amor àqueles que viviam na cafua – palavra de origem africana que quer dizer cova, antro, esconderijo – e que hoje, graças a ela, foram libertados e têm a possibilidade de sonhar. Como é o caso de Caíque, que está no centro desde os 3 anos: “Ele não tem uma perna, os dois braços, o maxilar e a língua, mas sempre foi muito esforçado”, expõe Clélia. Caíque sonhava em ter um filho e, hoje, é um homem realizado e feliz com seus dois empregos e um filho, que estuda no Colégio São Luiz. “Mamãe, até os 80 anos, dizia que a pessoa que mais aproveitou o Lar Escola São Francisco foi o Caíque”.
Mas, ao completar 90 anos, a mesma pergunta foi-lhe feita pelo padre Calazans e, naquele momento, sentiu que sua missão havia sido cumprida: “A pessoa que mais aproveitou o Lar Escola fui eu!”, respondeu. A mulher que fundou e durante 48 anos tomou a frente do Lar Escola São Francisco, já há algum tempo, não sai de casa. Aos 104 anos, perdeu a noção da grandeza de sua existência, o sentido que deu ao deficiente físico o poder e o direito de andar, estudar, trabalhar, sonhar e ter uma vida digna e respeitada.