Rios desvendados
Por uma pequena fresta na calçada da Rua Octávio de Morais Dantas, ao lado do condomínio Ibirapuera Boulevard, a água brota cristalina, corre pelo meio-fio por alguns metros, alcança a Travessa Humberto I e desaparece num bueiro do outro lado da rua. “Observem essa cor esverdeada sobre o asfalto. Para saber se a água é limpa basta notar o limo que ela cria por onde passa”, ensina o geógrafo Luiz de Campos durante uma expedição pelos rios do bairro.
Perto dali, na Praça Arquimedes da Silva, na Rua Dr. Fabrício Vampré, a cena é semelhante. A água brota límpida do meio-fio e some dentro da galeria escura. O fluxo contínuo deixa a rua de paralelepípedo parcialmente alagada. Noutro ponto do bairro, na rua Dr. Astolfo de Araújo, a água sequer alcança a superfície. Ainda assim é possível vê-la e ouvi-la correndo forte pela tubulação semiaberta. Nesses três locais a fonte é a mesma, e ela tem um nome lindo: Rio Boa Vista.
A exemplo da maioria dos rios existentes em São Paulo, o Boa Vista ficou à margem do processo de urbanização e foi condenado a correr preso em galerias subterrâneas e distante do olhar dos habitantes. “Mas o rio está vivo! Rios nunca morrem… “, lembra Luiz.É dessa reaproximação do corpo humano com o corpo das águas de nossa cidade que trata a instalação interativa Rios Des.Cobertos, em cartaz até o dia 18 de dezembro no terceiro andar da torre A do Sesc Vila Mariana.
Uma grande maquete em 3D projeta o mapa da hidrografia da São Paulo e as trajetórias dos rios pela geografia urbana. “A maioria das pessoas não sabe que esses rios estão vivos, que são limpos e que estão correndo por nossos bairros, debaixo de nossos pés. Essa maquete é mágica pura, é uma arte sensorial feita com emoção. Esse encanto é um caminho sem retorno, pois o rio entra em nós”, diz Luiz de Campos.
Criada pelo Estúdio Laborg, a maquete foi feita em escala e é composta por 25 camadas de MDF (fibra de madeira) cortadas a laser, cada uma com 3 mm, que representa 125 metros na topografia original. “A escala vertical foi aumentada para melhorar a definição do relevo da cidade e dos vales onde nascem os rios”, explica Charlie de Oliveira, sócio do Laborg.
Os visitantes podem navegar pelas águas projetadas na maquete por um monitor que apresenta nove vídeos breves, sem ordem estabelecida. Neles, a pessoa monta a sua própria instalação para descobrir as grandes, pequenas e micro bacias de São Paulo, a quantidade de águas cobertas, as retificações dos rios Pinheiros e Tietê, a relação das enchentes com os rios escondidos e as ruas e avenidas que têm nomes de rios. Para os moradores da Vila Mariana, em especial, a história dos afluentes que formam a Bacia do Sapateiro.
As projeções são exibidas intercaladas com outras dez camadas de visualizações, entre elas foto de satélite, topografia, ruas e avenidas, metrô, parques e águas visíveis. A comparação entre os rios que correm abertos e os que correm canalizados assusta: hoje 95% das águas da cidade correm em galerias.
“Só o conhecimento desses rios já é algo transformador, observa o arquiteto e urbanista José Bueno. “Ninguém irá lutar e defender aquilo que não sabe que existe. Antes de tudo é preciso descobrir o olhar das pessoas para esses rios, que é a parte mais difícil, pois se trata de mudar uma cultura e o modelo de cidade em que vivemos”. Para ele, Rios Des.Cobertos é uma instalação sensorial que mexe com as águas humanas. “Queremos que a pessoa olhe esses rios e se veja neles, que eles inspirem os visitantes!”.
PASSADO, PRESENTE E FUTURO
As pranchas de papelão, penduradas em três totens do salão, trazem textos e fotografias que contam a história das águas no processo de formação de São Paulo. O totem O Resgate da Memória apresenta os tanques que existiam no centro, entre eles o do Arouche, construído no século 18, mostra os chafarizes e bicas públicas, as competições e brincadeiras dentro d’água e o desenvolvimento da gestão hídrica na cidade com o surgimento das primeiras empresas de abastecimentos e tratamentos de esgoto. A expansão dos reservatórios no século 20 e o modelo atual do Sistema Cantareira, o principal da Região Metropolitana, conclui o Resgate da Memória.
O totem Presente e Futuro esboça um destino promissor para os nossos rios e convida os visitantes a fazer pequenos e grandes gestos para recuperá-los e preservá-los. A diversidade atual de nossos rios é abundante. “Há os que se salvam, há os que são belos, outros nem tanto. A maioria agonizante, mas, jamais morto”, explica Bueno.
Mas é no último totem, Eu, o Rio Sapateiro, que a história das águas de nossa região é revelada. E é o próprio rio que conta a sua história. “Meu nome é Sapateiro. Já me chamei Matadouro, Curtume e Rio das Pedras…”. Suas nascentes estão próximas às quatro estações do metrô: Paraíso, Ana Rosa, Vila Mariana e Santa Cruz, localizadas no espigão (colina) que corta a cidade, que era chamado pelos índios de Caaguaçu.
Um dos córregos, o Boa Vista (ou Caaguaçu) nasce próximo à estação Ana Rosa do metrô e desce serpenteando o relevo do bairro até cruzar a Avenida Pedro Álvares Cabral e encontrar seus afluentes, que passam por uma estação de tratamento dentro do Parque Ibirapuera, antes de seguir caminho para o deságue nos dois lagos do parque.
Foi para proteger esse rio que, em 2013, os moradores se mobilizaram contra a construção das três torres do Ibirapuera Boulevard, na Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 534. “Eu ficava muito esperançoso embaixo da terra, queria reencontrá-los na praça que eles desejavam para o local”, prossegue o rio a contar seu destino.
Na Estação Vila Mariana nasce o Rio Sapateiro, que corre a céu aberto num pequeno trecho na altura do número 111 da Rua Lutfalla Salim Achoa (travessa da Rua Capitão Cavalcanti). Dali, segue canalizado em direção à Cinemateca Brasileira. Ele já foi chamado de Matadouro, Curtume e Sapateiro, pois, em 1887, ao passar pelo Matadouro, ficava vermelho de sangue.
Uma das memórias de Seu Chiquinho, 99 anos, publicada no Pedaço da Vila, foi reproduzida na exposição para aproximar os moradores de nossos rios. “Uma das brincadeiras preferidas era explorar a mata do Ibirapuera. Lá nadávamos nos lagos e caçávamos rãs. Fazíamos trilhas até as cachoeiras e voltávamos para casa, à tardinha, cansados e mortos de fome. À noite, sob a luz do lampião, era a hora da ciranda na rua”.
SAÚDE DOS RIOS
As expedições de Luiz de Campos e José Bueno para descobrir as águas da cidade tiveram início em 2010 e resultaram no projeto Rios e Ruas. “Nos apaixonamos pelo tema. O Bueno sempre falava que precisávamos ir ao encontro desses rios, nos aproximar deles. Começamos e não paramos mais! Em São Paulo existe um rio encoberto a cada 300 metros”, informa Luiz.
O descaso com as águas da cidade causaram poluição – o que não é novidade… Contudo, o quadro se agravou ainda mais nos últimos dois anos devido à crise hídrica do Estado e à crise econômica do país. “Nosso saneamento sofreu ainda mais com a queda de investimentos em saneamento, coleta de esgoto e tratamento de efluentes”, destaca Bueno.
Os rios nascem limpos e são sujos no decorrer do seu curso — ou quando chegam ao seu destino. Esse é caso do Rio Sapateiro: do Ibirapuera, seus afluentes se encontram e seguem sob a Av. Juscelino Kubitschek até deságuar no Rio Pinheiros. “Estão nessa situação porque sujamos os rios até hoje, e continuaremos a sujá-los amanhã, e depois… É preciso parar com essa situação para poder recuperá-los”, alertam.
Os rios refletem quem somos nós; eles não são sujos, somos nós que os sujamos – o Rio Tietê é um espelho dessa história. “Rio poluído é uma expressão falsa. Ele foi sujo por alguém, por uma indústria, por isso está sujo. Um rio não é poluído! É essa percepção sensível e amorosa que move nosso trabalho”, explicam.
Localizada em plena Mata Atlântica, a cidade de São Paulo possui um bioma abundante em águas. A estimativa é de que é possível usufruir de pelo menos 1.500 km de cursos de rios, sem contar aqueles que ainda não foram descobertos “Queremos ver esses rios voltarem a cantar. Esse é um caminho sem volta e já estamos nele”, indica Bueno.
“Recuperar nossos rios é possível e é mais simples do que canalizá-los. E estamos bem atrasados nesse aspecto”. Há rios que são referências: o Saw Mill River, em Nova York, o Rio Manzanares, em Madri, a despoluição do Tamisa, em Londres. “Eu não tenho dúvidas de que um dia o Rio Tietê e o Rio Pinheiros serão recuperados, mas a gente vai sofrer até isso acontecer”, prevê Luiz.
Pequenas iniciativas de grupos e comunidades pelo resgate das águas crescem na cidade. “Esses trabalhos vão se proliferando e acabam pressionando o poder público a ajudar. O assunto tem encontrado espaço na imprensa e eventos. Precisamos fazer o que está ao nosso alcance, com paciência e amor”, concordam.
EXPEDIÇÃO
A instalação Rios Des.Cobertos promove uma expedição pelos cursos d’água dos afluentes que formam a Bacia do Sapateiro. A intenção é colocar as pessoas em contato direto com os rios. “Queremos que elas observem, ouçam e sintam as águas”, diz Luiz. Para participar do passeio é preciso se inscrever na Central de Atendimento do Sesc Vila Mariana.
A saída acontecerá no dia 3 de dezembro, às 10h30, da instalação, no terceiro andar do Sesc VM. Rios Des.Cobertos ainda conta com uma equipe educativa para orientar os visitantes. O agendamento de turmas escolares pode ser realizado pelo e-mail: agendamento@vilamariana.sescsp.org.br.
Rios Des.Cobertos
Local: Espaço de Tecnologia e Artes – 3º andar da Torre A do Sesc Vila Mariana, Rua Pelotas, 141.
Quando: Até o dia 18 de dezembro.
Visitação: de terça a sexta, das 10h às 20h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h.
Entrada gratuita