Proposta de Lei de Zoneamento descaracteriza o bairro

Aos poucos, e com uma intensidade cada vez mais agressiva, a paisagem da Vila Mariana tem sido modificada drasticamente. Os casarões e conjuntos arquitetônicos significativos para compreender a história do bairro têm sido demolidos para a construção de edifícios cada vez mais luxuosos, que acabam descaracterizando todo o seu entorno – sem levar em consideração a relevância afetiva que esses espaços representam para a população e para a história da cidade de São Paulo.

A rica história do bairro, formada por diferentes culturas, permanece viva no dia a dia de seus moradores. Um dos maiores exemplos disso é a possibilidade de conviver com arquiteturas históricas, como o Largo da Caixa D’água, local onde nasceu o bairro da Vila Mariana e onde, anteriormente, foi instalado o primeiro largo de São Paulo, o Largo das Pitangueiras. Na rua paralela, Dona Inácia Uchoa, toda de paralelepípedo, é possível encontrar exemplares de casinhas em art noveau que remontam às primeiras décadas do século 20, preservando características do início do processo de urbanização do bairro. Ela é uma das ruas mais antigas da cidade e já aparece em mapas de 1890.

A poucas quadras dali, na esquina entre as ruas França Pinto e Domingos de Morais, um marco ainda sinaliza o antigo “Caminho para Sorocaba”, percorrido pelos tropeiros. Ele foi um dos poucos espalhados pela cidade, em 1916, para demarcar os limites da capital, tornando-se uma peça fundamental para entender os antigos traçados pela Vila Mariana, entre outros “O Caminho do Mar”, estrada que ligava São Paulo a Santos e por onde circularam imigrantes, tropeiros e escravos que saíam do Porto de Santos com destino ao interior. Parte do trajeto, entre Jabaquara e Centro, serviu para a linha férrea, o bonde e depois o Metrô.

Ainda na Domingos de Morais, 1460, uma construção erguida em 1926 preserva a influência e a importância da cultura libanesa na formação do bairro. “Peças como essas possuem um valor que vai muito além da construção em si”, explica a vizinha, coordenadora aposentada do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), Mirthes Baffi, responsável por um estudo sobre os casarios existentes na Vila Mariana: “A arquitetura é um produto cultural como qualquer outro e reflete um momento histórico. Ela também participa, principalmente, da relação de pertencimento das pessoas com a cidade, com o bairro”.

Muitos dos casarões escondem histórias de personalidades importantes para a cultura do bairro e da cidade, entre eles a monumental residência situada na Rua Capitão Cavalcanti, 38, quase na esquina com a Rua Domingos de Morais, construída pelo comerciante sírio Chaker Assad (1884-1976) no início da década de 1930. Há também as duas casas na Rua Humberto I, n.º 921 e 923, de 1924, erguidas por Amato Costabile, que trouxe da Itália a imagem de Santa Maria a Mare para a Paróquia Santo Inácio de Loiola, que ele ajudou a construir. Na Rua Dr. Eduardo Martinelli ainda resistem duas casas remanescentes da Villa Kyrial — palacete do mecenas José de Freitas Valle. O local era frequentado pelos grandes artistas e intelectuais do movimento modernista, entre eles o pintor Lasar Segall (que morou onde hoje é o museu) e o escritor Oswald de Andrade (que viveu na Rua Caravelas, n.o 214). 

Facilmente encontrados pelo pedaço, os pequenos conjuntos de casinhas também possuem grande valor histórico. Entre tantos exemplares dispersos pelo bairro se encontra o conjunto da Rua Morgado de Mateus, construído na década de 1920 pelo renomado arquiteto Rino Levi. “Descobrir que esse conjunto de casas foi criado pelo Rino Levi é muito representativo, pois ele foi um arquiteto muito importante para a cidade; existem muitas obras de sua autoria na capital”, diz a arquiteta e professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Rosana Miranda, também Conselheira Participativa da Vila Mariana.

Outros dois exemplares que preservam a memória do bairro, conta Mirthes, são os conjuntos Ana Rosa e o que fica em frente ao Instituto Biológico. “Essas casinhas, em frente ao IB, são um dos patrimônios da Vila Mariana, pois se trata de uma sequência de casas implantadas na diagonal e possuem uma arquitetura georgiana. De igual importância é o conjunto Ana Rosa, pois não é formado por casas idênticas. Ele foi projetado por diferentes arquitetos num momento em que a arquitetura moderna estava começando a se expandir no país, no final da década de 1950. É, portanto, um conjunto moderno e com rara harmonia entre espaços livres, áreas verdes e construção”, explica a arquiteta. E completa: “Essa história precisa ser preservada”.

Esses exemplares arquitetônicos que margeiam as ruas Domingos de Morais e Vergueiro correm o risco de serem demolidos, como prevê as diretrizes estabelecidas pelo Novo Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade, cuja revisão da Lei de Zoneamento (Lei Nº 13.885, de 25 de agosto de 2014) classifica o corredor de transporte e metrô como Eixo de Estruturação e Transformação Urbana. Nesse eixo, ocorrerá uma operação similar à que foi realizada nas avenidas Faria Lima e Hélio Pellegrini, e 30% da Vila Mariana será verticalizada. 

A principal proposta desse eixo é aproximar a moradia do transporte. “A implantação desses eixos no Plano Diretor foi realizada à revelia das discussões regionais. Isso foi elaborado em cima de um conceito geral da cidade, padronizado, sem levar em consideração as características de cada área.” Um eixo de 8 km de extensão será implantado nas ruas Domingos de Morais e Vergueiro, cobrindo as 11 estações desse percurso, com um raio que pode ser de 400 a 600 m, o equivalente a três quadras. “Ou seja, surgirá uma nova Avenida Paulista na Vila Mariana sem ter sido feito nenhum estudo ambiental e urbanístico”, alerta Ivan Maglio, Engenheiro Civil especializado em Planejamento Urbano e Ambiental e Coordenador do Plano Diretor Estratégico de 2002.

Para que essa transformação ocorra, prossegue Ivan, será preciso fazer um redesenvolvimento dessa área e abrir novas ruas. “Todo esse casario hoje existente no entorno da Domingos de Morais e da Vergueiro pode vir abaixo, pois não vale nada perto de um prédio. Esse é um erro de origem, pois, quando propuseram o Plano Diretor, não informaram à população que o seu bairro seria transformado com grandes impactos. A linha Norte-Sul, que corta a Vila Mariana, ficará sobrecarregada, e o mesmo acontecerá com o trânsito. As construtoras já estão atacando essas áreas para comprar o máximo possível de pequenos sobrados a fim de construir torres. Permite-se isso e a iniciativa privada vai e faz”, alerta.

“Se você for cavocar o chão próximo à Caixa D’água, você encontrará vestígios de ocupações passadas. Isso não é importante? A história está nisso, aqui, no chão da cidade. Não vamos valorizar a nossa história? Ela é importantíssima, pois é ela que dá significado para as nossas vidas. Isso não significa, absolutamente, que não se possa mexer na cidade, não. Mas é preciso ter delicadeza. É preciso articular as coisas que precisam ser preservadas com as coisas que podem ser transformadas. Temos que ter limite na verticalização, e o critério não pode ser apenas econômico. Tem que ser, também, de ambiente cultural e de qualidade de vida, para que você possa ver a paisagem. Hoje, precisamos reeducar as imobiliárias para aprenderem a resgatar e usar prédios que estão desocupados pela cidade”, propõe Mirthes.

Após ser sancionado pelo prefeito Fernando Haddad, no dia 31 de julho deste ano, o Plano Diretor Estratégico entrou numa nova etapa, cujo objetivo é revisar e atualizar as regras de parcelamento, uso e ocupação do solo, a Lei de Zoneamento. Neste ano, ao contrário da revisão de 2004, a Prefeitura decidiu que a Lei de Zoneamento da cidade fosse votada pelos vereadores antes dos Planos Regionais e de Bairros.

Essa inversão enfraquece a participação popular, como explica Ivan: “Não se pode debater o zoneamento antes do Plano Regional. O correto seria que a população pudesse apresentar o que deseja para o seu bairro, quanto a preservação e modificação, para depois entrar na discussão de como é que o zoneamento irá garantir isso”. Com a Lei de Zoneamento aprovada, a população será obrigada a discutir o que já está normatizado. “Do jeito como está, hoje, retira da população a possibilidade de discutir o que ela realmente conhece, que é a sua região, o seu bairro, a sua rua.”

O momento mais importante ocorrerá no Plano Regional, que possibilitará discutir a redução dos limites dos eixos, as áreas de preservação, de manutenção, de menor verticalização. É preciso fazer essa leitura de como o bairro é hoje e como os moradores querem que seja, e não impor uma proposta de zoneamento abstrata. “A participação popular é muito importante, mas ela não pode ser manipulada; se for somente para referendar ou não essa proposta, isso não é participação popular”, analisa Ivan.

Esse novo modelo de ver a cidade, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), será consolidado por audiência pública, em janeiro, e então enviado para a Câmara Municipal. Determinadas por lei, audiências públicas foram realizadas – em que pouco ou nada do que a vizinhança pediu foi contemplado. No dia 29 de novembro, a Oficina da Subprefeitura Vila Mariana será a última chance de defender a região. “No máximo, essas oficinas que estão acontecendo irão alterar uma coisa aqui ou ali”, lamenta Ivan Maglio, morador da Vila Madalena, que elaborou um estudo sobre os im-pactos do Plano Diretor no pedaço para colaborar com o Conselho Participativo da Vila Mariana.

Até dezembro, a minuta de lei será fechada e, em seguida, uma nova fase de discussões será realizada. Então, o projeto será aprovado pelo executivo e encaminhado para apreciação da Câmara, possivelmente antes do Carnaval.

Em Defesa do bairro

Para preservar a história do bairro e impedir a descaracterização de sua paisagem, o Conselho Participativo da Vila Mariana tem se mobilizado e promovido encontros para debater propostas que possam proteger o pedaço das normas propostas pela nova Lei de Zoneamento, que pretende unificar as quatro zonas hoje existentes no bairro (Zm1, Zm2, Zm3a e Zm3b) numa única, chamada Zona Mista, que permitirá a construção de edifícios de 9 andares no miolo do bairro.

Segundo o Coordenador do Conselho Participativo, Ricardo Fraga, essa mudança não respeita as verdadeiras necessidades do bairro, nem tampouco o desejo de seus moradores. “Em relação às Zm2 e Zm3, que permitem construções acima de 9 andares, isso foi um ganho; agora, em comparação com a Zm1, que permite até 5 andares, se perde. O que o Conselho Participativo defende é que, nesse miolo do bairro, possam ser construídos prédios de até 5 andares, e, ao longo dos eixos de transformação, 9 andares”, explica.

“O Conselho é contra essa verticalização que vem ocorrendo na Vila Mariana e quer incluir nesse novo zoneamento alguns pontos que são fundamentais para o bairro, como uma zona de proteção ambiental ao longo dos cursos d’água que o cortam (Córrego do Sapateiro e Boa Vista), manter a Zm1 e preservar os nossos patrimônios históricos, classificados como ZEPEC (Zona Especial de Preservação Cultural). Acontece que, nessa nova proposta de Zoneamento, muitos patrimônios nem sequer constam do mapa; apenas os tradicionais, como o Museu Lasar Segall, a Cinemateca Brasileira e outros poucos”, contesta Fraga.

Ricardo Fraga também defende maior participação das associações de bairro nessa reta final do Plano Diretor, que, de acordo com ele, está muito fraca, quase inexistente. “Essa mobilização é muito importante, pois haverá apenas uma oficina, que acontecerá no dia 29 de novembro, no Colégio Arquidiocesano, para debater esse novo Zoneamento com a população.

No entanto, a divulgação desse encontro para a população não está sendo feita como deveria”, ressalta. E finaliza: “Agora é a hora – com a participação de todos – de lutarmos pela Vila

Mariana que queremos no futuro”.

O que podemos fazer?

No dia 17 de novembro, mais de 50 entidades de bairros se reuniram, no Instituto Biológico, para maior esclarecimento sobre as mudanças da nova Lei de Zoneamento. O convidado foi o prefeito Fernando Haddad, que pediu ao Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), Fernando de Mello Franco, que o representasse. 

Agora, é o momento da sociedade se mobilizar. Alguns canais de participação estão abertos com o intuito de escutar a população sobre a Lei de Zoneamento, que será apresentada pela SMDU ao Executivo ainda este ano e, depois, à Câmara dos Vereadores. As diretrizes dessa nova Lei nortearão o crescimento da cidade pelos próximos 15 anos. 

É possível dar sugestões no portal da SMDU, por meio de um formulário:

www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano

Outra maneira de participar, é comparecer na Oficina da Subprefeitura Vila Mariana, que será realizada no dia 29 de novembro, das 8h às 13h30, no Colégio Arquidiocesano, localizado na Rua Domingos de Morais, 2565, próximo da estação de Metrô Santa Cruz.

Agora, mais do que nunca, é o momento de cobrar o seu vereador!