Missão Xingu

Em 1961, por um ato do presidente Jânio Quadros, foi criado o Parque Indígena do Xingu (PIX): uma área de 26 mil quilômetros quadrados, habitada por 6 mil indígenas distribuídos em 16 etnias. Quatro anos depois, devido à falta de cuidados médicos e sanitários nas aldeias — que prenunciava o risco de extinção de 1.500 indígenas —, nasceu o  Projeto Xingu, programa de extensão universitária dedicado à saúde indígena. O projeto nasceu do encontro entre o médico e professor Roberto Baruzzi, da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), e o sertanista e diretor do Parque, Orlando Villas Bôas.

Sediado na Vila Mariana, o projeto cuida, há 50 anos, da saúde dos povos indígenas. Quem conta é a coordenadora Sofia Mendonça, que entrou no projeto em 1980, quando ainda era aluna de medicina da Unifesp. “O maior mérito desse programa é a sua continuidade, pois é um trabalho que envolve professores, pesquisadores, estudantes e indígenas na construção de um conhecimento consistente”, analisa Sofia.

Na Rua Estado de Israel, o projeto mantém desde 1992 o Ambulatório do Índio, que recebe indígenas de todo o país. “Ele é uma referência nacional em casos de média e alta complexidade. Muitos vêm aqui para fazer transplantes, cirurgia cardíaca, para tratar um câncer ou simplesmente investigar uma situação. O ambulatório possui uma ampla equipe de médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas. O paciente recebe toda atenção durante sua estadia para fazer o tratamento, como hospedagem e alimentação, e, ser for necessário, trazemos até o pajé para fazer uma pajelança”, explica a coordenadora. 

O trabalhado desempenhado pelo projeto acontece em diferentes frentes. Enquanto medidas sanitárias são tomadas e o quadro clínico nas aldeias é acompanhado de perto, os integrantes lutam por um modelo de saúde adequada ao povo indígena. “Apesar de o Estado ter assumido a saúde indígena pelo SUS, com recursos próprios e um desenho de atuação bacana, na prática ocorre de modo diferente, pois predomina uma linha biomédica, medicalizante e impositiva, o que acaba escondendo as práticas tradicionais dos povos. Isso tem nos preocupado”, admite. 

Tudo isso por que, ao longo dos anos, as transformações no cotidiano das aldeias se intensificaram, e estão sempre associadas ao contato com a nossa sociedade. “Os municípios estão mais próximos das aldeias, o dinheiro está entrando, o deslocamento para fora aumentou, a televisão e a tecnologia digital fazem parte do dia a dia”, informa.

A diminuição da pesca e da caça, provocada pelo desmatamento e poluição dos rios, tem alterado os hábitos alimentares das tribos de modo acelerado. “O consumo de alimentos como açúcar refinado, sal, biscoitos, refrigerantes e bebidas alcoólicas elevou o número de novas doenças como a obesidade, que inexistia, pressão alta, hipertensão, diabetes.”

Sofia explica que a presença do projeto nas tribos do parque já foi mais frequente, e que hoje ocorrem diferentes incursões pela região. “São realizadas quatros viagens por ano para fazer a imunização; três viagens dedicadas à saúde da mulher, e outras que acontecem para fazer a capacitação de equipe local. A área de atuação mais intensa do projeto abrange os povos médio, baixo e leste Xingu, que somam 3 mil indígenas. Recentemente voltamos a atuar no alto Xingu, onde o contato com as tribos ainda é restrito”, diz. 

A equipe faz uma investigação social das tribos por meio do diálogo com as lideranças. “Nosso trabalho é entender como eles sentem as mudanças, a vida na aldeia, as relações. Em seguida, conversamos com as lideranças sobre os problemas encontrados e, juntos, se aquilo for um problema aos olhos delas, pensamos em propostas de intervenção”. As discussões percorrem diferentes grupos, entre os mais velhos, os jovens, as mulheres. Todos refletem sobre a sua realidade em busca de melhores condições. 

Para manter a coesão social nas aldeias diante das demandas que aparecem, novas regras são criadas, diz Sofia. “Se tem algo que está causando um desconforto, eles intervêm. Devido ao aumento de alcoolismo, por exemplo, a bebida foi proibida; quem costuma sair para buscar alimentos nas cidades vizinhas não pode trazer apenas bobagens”. 

A coordenadora explica que a atuação do Projeto na busca por melhorias na saúde dos povos xinguanos transcorre sem interferência na cultura e nas práticas tradicionais dos povos, como a pajelança, o uso de plantas medicinais, cantos de cura. “A atuação do projeto é muito bem pensada; ocorrem muitos encontros sobre a questão do índio, estudos antropológicos, sociológicos, respeitando os saberes para construir algo maior. Todo esse processo é debatido entre alunos e professores”, explica. 

O projeto se expandiu em 1990 e a Unifesp começou a formar indígenas como agentes de saúde e auxiliares de enfermagem dentro do PIX. Esse trabalho, porém, encontra-se paralisado desde 2012 por falta de investimentos. Por outro lado, a instituição também deu início, em 2007, a cursos de especialização em saúde indígena. Desde sua implantação, já foram mais de 350 profissionais formados e outros 400 estão no processo. 

“Um dos grandes valores do Projeto Xingu é sua capacidade de se reinventar nesses anos todos, sempre atendo aos diferentes atores e contextos. É um dos projetos de extensão universitária mais longos do país. A universidade precisa estar junto ao conhecimento ancestral, da realidade de índios e não índios. Essa troca de saberes é fundamental para construirmos o conhecimento”, afirma. 

A sede do projeto no bairro é uma espécie de pedaço do Xingu. Quadros, bordados, fotografias, uma rica coleção de artesanatos e documentos  evocam a forte presença da sabedoria indígena no dia a dia da equipe. “A troca de conhecimento é constante”, diz Sofia. Ao longo dessas cinco décadas de atuação do programa, o trabalho em parceria com as lideranças se fortaleceu. “Eles sempre nos recebem muito bem, participam de todas as etapas do trabalho e hoje querem que o projeto aumente sua atuação”, revela doutora Sofia, que há 36 anos atua no Projeto Xingu pela preservação da saúde e da cultura dos povos indígenas. www.projetoxingu.unifesp.br

Museu

Acervo reúne mais de 500 peças que preservam a história do projeto e da cultura xinguana

No decorrer desses 50 anos de atuação, o Projeto Xingu formou um valioso acervo sobre vida e a arte dos povos xinguanos. Ele reúne mais de 500 obras entre fotografias, artesanatos, entre outras peças que fazem parte do cotidiano das tribos. 

“Temos muitas peças em cerâmica, colares, peneiras, esculturas, redes, manto de pajé, máscaras usadas em determinadas festas, lanças, arcos, adornos e instrumentos médicos usados no início do projeto, como microscópios e fichas de identificação”, informa Sofia. 

As peças, no entanto, aguardam um novo local para serem acomodadas. “O museu ocupava uma sala da casa principal do projeto, na Rua Botucatu. Desde a instalação da diretoria da

Unifesp no local, em 2013, mudamos e estamos aguardando a finalização do novo o museu, que já está sendo preparado na biblioteca da escola, e com maior conectividade com o público”. 

A inauguração do museu está prevista para acontecer em 2017. Aos 50 anos, o Projeto Xingu também se prepara para ocupar uma nova sede, adianta Sofia. “Muito em breve mudaremos para uma casa maior, própria do Projeto, aqui ao lado, na Rua Otonis.”