Como preservar a Vila Mariana?

Calor humano: esse é o primeiro ponto que os moradores destacam sempre que o assunto é a relação com o bairro. Em segundo lugar está a riqueza dos patrimônios locais. Juntos, esses dois bens, imaterial e material, ilustram o sentimento de pertencimento à paisagem e o ‘ar de vila’ que prevalecem nas relações entre os vizinhos, nas conversas de esquina, no boteco, na padaria… 

A preservação de patrimônios, em São Paulo, que representam valor histórico, cultural, ambiental, arquitetônico e afetivo para os moradores pode ser realizada por meio de tombamento em três esferas: federal, pelo Iphan; estadual, pelo Condephaat; e municipal, pelo Conpresp. Entre os bens do bairro tombados na esfera federal, estão: Casa Modernista, acervo do Museu Lasar Segall, Cinemateca Brasileira e o conjunto de edificações do Parque Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer.

Destacada pelos patrimônios que conservam a história de seus moradores, seja na simplicidade de suas casinhas, seja na imponência de seus edifícios tombados, a paisagem do bairro evidencia as diferentes formas de ocupações ao longo de seu desenvolvimento. A preservação dessa história pelos próximos dezesseis anos dependerá, agora, da participação dos moradores nessa reta final da revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, o Plano de Bairro.

É o que diz o Supervisor de Planejamento e Desenvolvimento Urbano da subprefeitura da Vila Mariana, Antonio Rosselló, que fala sobre o novo PDE e as transformações que irão ocorrer no bairro na entrevista desta edição. “O Plano de Bairro será feito pelos próprios moradores em parceria com associações de bairro e o Conselho Participativo Municipal”, ressalta.

Antonio informa que não é preciso aguardar a devolutiva do Plano Regional, prevista para o fim deste ano, para começar a trabalhar. “A elaboração do Plano de Bairro já pode começar agora. O quanto antes acontecer o levantamento dos patrimônios — tanto os arquitetônicos quanto os ambientais — maiores serão as chances de os moradores apresentarem um bom Plano de conservação para a Vila Mariana”.

A participação nas políticas públicas é o principal meio para preservar a paisagem no dia a dia da comunidade, diz a arquiteta e diretora aposentada da Divisão de Preservação do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) Mirthes Baffi.  Ela lembra que, no Plano Diretor de 2002, foi a participação popular que assegurou a preservação de um raio de 300 metros do Instituto Biológico. “Se não fosse a persistência dos moradores, aquele entorno já teria sido verticalizado”, destaca.

A preservação dos patrimônios, mesmo os que já estão tombados, sempre será uma luta continua. “Nesse novo PDE, por exemplo, essa área de proteção ao redor do IB foi reduzida pelo Compresp, que manteve preservado apenas a área do IB e os casarios em sua frente. O resto foi destombado. Em termos de qualidade de vida, foi uma grande perda. Tudo pode acontecer e precisamos estar atentos, sempre vigiando nosso bairro”, diz ela, que conhece bem a ganância das construtoras, ainda mais em regiões centrais já consolidadas como a nossa.

Na elaboração desse Plano de Bairro, alerta Mirthes, resta aos moradores a oportunidade para tentar minimizar os danos. “Eu não acredito que o Plano de Bairro conseguirá reverter as distorções previstas na legislação do novo PDE. Nessa briga, é importante estarmos conscientes de que estamos partindo do negativo. A qualidade de vida no bairro está sendo perdida e não podemos aceitar isso, pois queremos um bairro mais humano, que tenha vida”.

Distorções

Exemplos recentes de como o processo de verticalização vem alterando a paisagem local não faltam. Na Avenida Conselheiro Rodrigues Alves, 534, o terreno de 100 mil m², por onde passa o córrego Boa Vista, abriga hoje um complexo de três torres de 27 andares do condomínio Ibirapuera Boulevard. Ele destoa da paisagem característica da história local, e continua dando dor de cabeça para os vizinhos que moram na pequena Rua Octaviano Morais Dantas, descarregando diariamente na sarjeta toda – e muita! –  água acumulada e não reutilizada pelo condomínio. 

Na Rua Humberto I, uma série de casinhas coloridas foi demolida para a construção de um condomínio da construtora Vitacon. Já na Rua Morgado de Mateus, o terreno do número 481 está pronto para o início das obras de outro edifício, em novembro. Quando estiver finalizado, a paisagem do prédio tombado do Instituto Biológico, visto na altura da Rua Morgado de Mateus com a Rio Grande, desaparecerá.

O adensamento proposto pelo novo Plano Diretor no bairro, de modo mais agressivo nos corredores de transportes, avançando um raio de 150 metros, e no Eixo de Estruturação e Transformação Urbana, seguindo as linhas do metrô e avançando no raio de 400 metros, irá alterar o modo de vida dos moradores, como explica Mirthes.“Hoje temos na Vila Mariana prédios baixos, muitas casinhas, poucos carros nas ruas; ou seja, fatores que aproximam as pessoas do espaço físico e umas das outras. A verticalização e o adensamento irão diluir essas relações de afeto. Da maneira como o futuro do bairro é anunciado pelo PDE, as pessoas se distanciam, as ruas se tornam apenas local de passagem, não de estar. Esse ‘ar de vila’ do bairro, do qual nos orgulhamos tanto, está ameaçado”, observa.

A busca de alterativas entre os moradores ajuda na preservação da história local. Foi o que fez o Conselho Participativo VM para proteger o marco quilométrico no número 20, da Rua França Pinto, na esquina com a Domingos de Morais. Em parceria com comerciantes do entorno, que ajudaram numa vaquinha, o Conselho irá instalar um canteiro de proteção ao redor do Marco de Meia Légua — tombado pelo Compresp em 2013 — a exemplo do que ocorreu com os outros dois  marcos existentes na cidade.

Ponte para o futuro

“Para projetar a cidade, o nosso bairro, precisamos conhecer o valor de nossos patrimônios, pois eles são as nossas referências e as bases para o desenvolvimento. Qualquer adensamento precisa levar em consideração a história local”, afirma a arquiteta, atual diretora do  DPH e Presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (Conpresp), Nádia Somekh.

Nádia destaca que a principal marca da paisagem do bairro é a arquitetura moder-nista. “Ela teve início, em São Paulo, na Vila Mariana, nas casinhas projetadas pelo arquiteto Gregori Warchavchik na Rua Berta, entre elas o Museu Lasar Segall. Temos a Casa Modernista, na Rua Santa Cruz, e o conjunto Ana Rosa, na Rua José de Queiroz Aranha. O patrimônio é a nossa maior herança, a nossa identidade, ele é a porta de acesso ao futuro que não podemos fechar”.

Nesse momento de Plano de Bairro, Nádia afirma que é a hora de lutar pela história que esses bens representam e pelos espaços públicos. “Não podemos apagar essas memórias, pois a história do patrimônio é a história do morador do bairro. Um desses espaços, que está em processo de tombamento, é o Largo da Caixa D’água. Ele precisa ser preservado e a Caixa D’Água deve ser reaberta ao público. A participação nas audiências públicas e o levantamento de registros sobre a história do bairro são fundamentais para manter a história vida”, orienta a especialista.