As memórias e o envelhecer
A memória é a essência de nossa identidade. Com o passar do tempo, ela degenera-se. A médica neurologista Ana Luísa Rosas explica que são vários os tipos de demências, quais os sintomas de cada uma delas e como encarar a doença. Em contraponto, a terapeuta ocupacional Laís Ferreira apresenta um projeto que resgata as reminiscências de idosos na clínica em que trabalha no pedaço; e quantas surpresas resultaram desse projeto!
A memória é a essência da nossa identidade. É por meio dela que se retém conhecimento e se retoma vivências. Ela é o suporte do nosso conhecimento, habilidades e planejamento; reporta-nos ao passado, nos situa no presente e nos ajuda a projetar o futuro. Do latim ‘memoriae’, é a faculdade de reter e /ou readquirir ideias, imagens, expressões e conhecimentos; é como um olhar mental que nos leva às experiências vividas.
No avançar da idade, a memória se degenera e as doenças começam a aparecer. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a demência será o problema de saúde pública mais importante deste século. Com o aumento da expectativa de vida, a OMS estima que, em 2030, haverá 76 milhões de pessoas acometidas pela doença em todo o mundo.
Diretora científica da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ), regional São Paulo, a médica neurologista Ana Luísa Rosas diz que é comum as pessoas acreditarem que memória significa inteligência. E explica: “A memória é apenas uma entre as várias funções cognitivas do ser humano. Além dela, há a linguagem, a atenção, o pensamento abstrato, entre outras”.
A neurologista esclarece que o esquecimento é causado por diferentes motivos. “Às vezes não é a memória que está prejudicada, e sim outras funções cognitivas. Por isso, é preciso tomar muito cuidado ao apontar a causa, pois há outras doenças e situações que provocam a perda de memória, entre elas o estresse e a depressão. Hoje, a depressão é a doença que mais traz queixa de perda de memória”.
Temos vários tipos de memória que usam sistemas cerebrais diferentes e, cada uma delas é resgatada dependendo da situação para poder lembrar de uma coisa nos próximos minutos, horas, meses ou anos. “Para cada situação é utilizada um sistema de memória: memória de curta duração, memória imediata, de longa duração …”, ensina a médica.
A memória ou sua progressiva perda dependerá de vários fatores, diz Ana Luísa. “Ambientais, tipo de alimentação, atividades físicas e intelectuais, nível educacional… Deve-se tomar cuidado ao achar que demência é hereditária. Tudo em nós é genético, mas não é porque alguém em nossa família tem ou teve essa doença é que iremos desenvolvê-la”.
A doença de Alzheimer é a mais comum das demências e a mais fácil de ser detectar e, em geral, ela acomete pessoas com mais de 65 anos. No entanto existem outros tipos de demências cujo diagnóstico é mais demorado, relacionados pela especialista: “Demência vascular (devido ao AVC), Demência de Lewy, demência da Doença de Parkinson, Demência Frontotemporal”. E as demências progressivas, essas as mais raras, que podem ser infeciosas. É o caso da Encefalite, Doença da Vaca Louca e Demências Priônicas. “Entre as demências tratáveis estão a depressão, os problemas de tireoide e a deficiência de vitaminas”, lista.
Há maneiras de detectar cada tipo de demência, pois cada uma tem ‘um carro chefe’, explica Ana Luísa. “No Alzheimer o carro chefe é a memória; na Demência Frontotemporal é o comportamento; no Parkinson é a função motora, que depois evolui para o comprometimento cognitivo; quando essa evolução se dá ao contrário, primeiro o comprometimento cognitivo e depois a memória, é Demência de Lewy”.
A médica explica que há muitos gatilhos que antecedem o aparecimento da doença. “Hoje, as pessoas trabalham até mais tarde. E, quando se aposentam, embora pensem em aproveitar a vida nos primeiros meses, logo começam a desanimar, a se sentirem inúteis… E aí entram em depressão. Para as mulheres é mais comum que o gatilho dispare quando os filhos saem de casa ou depois de enviuvarem”.
A primeira fase do Alzheimer é marcada pelos transtornos cognitivos leves, chamados de pródromos da demência. Cada paciente reage de uma maneira, ressalta a neurologista. “Não há um paciente igual ao outro. Eles podem estar na mesma fase, mas recebem, por exemplo, medicamentos diferentes. No caso de perda de memória relacionada ao comportamento, as reações variam de agressividade à desconfiança”.
Para se diagnosticar a demência, há alguns testes, entre eles o Mini Exame do Estado Mental (MEEM). “É o exame que usamos de base para depois aplicarmos outros testes. Antes de examinar a queixa de memória, é preciso estudar o perfil do paciente para identificar o tipo de esquecimento que ele tem e se há alguma situação de risco”.
Dentro de casa
A médica conta que muitos de seus pacientes tentam manipular a situação para esconder o início da doença. “Muitos idosos têm muita reserva cognitiva e não confessam que estão com problemas. Dizem que estão apenas cansados, desanimados…”
Dentro de casa, os familiares precisam estar atentos para saber diferenciar se a perda de alguma habilidade foi em função de esquecimento ou de alguma dificuldade física. “São os detalhes que vão diagnosticar se é Alzheimer. A queixa de memória pode se tratar de outras demências e, às vezes, é preciso meses para chegar ao diagnóstico correto”.
Ela explica que, na medida em que o idoso vai passando para a fase da demência, uma das coisas que se perdem nesse processo é a orientação temporal e espacial. “Ele não sabe que dia ou mês estamos. A resposta que sempre escuto no consultório é ‘hoje não vi o calendário’ ou ‘aí, minha filha, não ligo para isso’. Na perda da noção espacial, determinados ambientes pioram a situação de demência: lugares escuros, muita sombra, ambientes com muitas informações, como paredes de cores fortes, muitos quadros, enfeites…”.
Outra forma de notar o progresso da demência é ver a organização dos armários, abrir a geladeira… O vínculo familiar é fundamental nesse momento. “As pessoas não sabem lidar com os primeiros sinais da demência, ficam desesperadas e querem achar uma solução”.
Um passo fundamental para os familiares é entender qual é o tipo de demência para estabelecer uma boa relação. Mesmo doente, o idoso jamais perde a sua identidade. “Se o problema é comportamental, há duas maneiras de tratá-lo: com ou sem medicamentos — sem é sempre é a melhor maneira”. A médica dá o exemplo de uma paciente cuja filha vivia reclamando. Em toda consulta, ela dizia: ‘minha mãe não quer comer, não toma banho!’. A mãe parecia um carma na vida dela. Mas, quando essa senhora ia ao consultório, mostrava-se muito tranquila. “Mas eu sentia certa contrariedade nela, parecia triste. Fui detectar o problema numa VD (Visita Domiciliar) e, de cara, vi um monte de coisas erradas no ambiente em que ela vivia”.
Ao entrar, Ana Luísa se deparou com a senhora sentada no sofá assistindo televisão num ambiente repleto de informação. “Na hora do almoço, havia uma mesa preparada de qualquer jeito, com copo de plástico e guardanapo de papel. Essa senhora teve um padrão de vida alto, oferecia grandes jantares, era vaidosa… Como sentar-se numa mesa e beber num copo de plástico sem reclamar? Na hora do banho, a cuidadora começava a despir a senhora já no corredor, sem o mínimo de respeito”.
Depois de observar e anotar tudo isso, a médica pediu para servir um lanche para aquela senhora. Preparou uma mesa bonita, colocou um copo de vidro, um guardanapo de tecido e um bolo no centro da mesa. A senhora elogiou a mesa, sentou-se, colocou o guardanapo no colo e lanchou tranquilamente.
À cuidadora, Ana Luísa orientou que despisse a senhora no banheiro e conversasse com ela para saber, por exemplo, se ela gostava do cheiro do sabonete, da temperatura da água… “São esses pequenos cuidados que melhoram o comportamento do idoso com demência. É preciso sempre respeitar a sua individualidade”.
“Esse respeito também precisa ser trabalhado urgentemente pelas casas de repouso, que necessitam ampliar os projetos dirigidos aos idosos: elas devem oferecer esporte, música, alimentação saudável e interação entre os internos com semelhanças cognitivas”, observa.
Memórias Vivas
Promover a saúde dos idosos é a vocação da terapeuta ocupacional Laís Ferreira, moradora da Rua Eça de Queiroz. Há um ano ela realiza um projeto de resgate de memórias junto aos idosos da Clínica Mental Sênior, na Rua Joaquim Távora. “Como eu moro na Vila Mariana, decidi me apresentar para a clínica como terapeuta ocupacional”. O diretor da clínica, Claudio Luiz de Freitas Costa, gostou da ideia e do currículo de Laís, que já tinha trabalhado com doentes mentais na Unifesp. Pediu então para ela colocar tudo no papel para ser avaliado. “O projeto só foi aceito porque a clínica, onde o seu Chiquinho Villano está intenado, se interessa pela história de cada paciente”, diz.
O trabalho da vizinha consiste em registrar as histórias de vida dos idosos. “Todos nós escutamos as histórias uns dos outros e ficamos impressionados com a riqueza das lembranças. É um espaço onde propicio a circulação da palavra e a reatualização dessas memórias, inclusive para as pessoas que cuidam deles”.
Laís ouve as histórias, tira uma foto e mostra aos funcionários da clínica. “O auxiliar de enfermagem, por exemplo, vê o trabalho e pensa: ‘nossa, esse senhor escreveu muitas poesias’, ‘essa senhora teve uma vida na alta sociedade da literatura’, ‘o pai dessa senhora era amigo do Jorge Amado’. Ao reatualizar essas histórias, as memórias transformam o olhar dos profissionais que cuidam desses idosos sujeitados a uma rotina asilada”, nota Laís, que, de tanto ouvir histórias, brinca: “Tornei-me uma terapeuta-repórter”.
E quantas memórias foram descobertas! A começar pelas de dona Dulce Jagle, de 79 anos, que, na juventude morou num casarão na esquina da Av. Cons. Rodrigues Alves com a Rua Áurea. O pai, Adolfho Jagle, era um reconhecido médico urologista filiado ao Partidão.
“Nossa casa vivia cheia de amigos importantes, pintores e intelectuais. Ele era um boêmio, mas não deixava isso interferir no trabalho. Meu pai era um homem de muita personalidade. Nas reuniões que fazia em casa, recebia grandes personalidades como Luiz Carlos Prestes e a escritora russa Tatiana Belinky. Eu cresci com Gianfrancesco Guarnieri, éramos como irmãos. Fomos juntos às passeatas. A minha mãe ficava louca, morria de medo”.
Dona Dulce revela que foi sua mãe que apresentou a primeira esposa do escritor Jorge Amado. “Ele era grande amigo de meu pai”. Outra história de vida revelada é a do senhor Antônio Daetta, de 90 anos, que vivia com a esposa na Rua Eça de Queiroz. Metalúrgico, ferramenteiro, sempre gostou de ler e é um grande poeta. “Comecei a escrever aos 12 anos, inspirado pelos grandes clássicos!”. A sua esposa está compilando suas poesias para publicá-las ainda este ano. “Ele é um senhor muito curioso”, observa Laís.
A interação entre os idosos, previsto no projeto de Laís, resultou num maravilhoso sarau realizado no ano passado. A pianista dona Zina Weisberg, 64 anos, moradora não interna da clínica, musicou os poemas do senhor Draetta. “Foi um dia inesquecível”, recorda Laís.
O respeito pela origem e pela cultura dos internos é outro trabalho. “Na clínica há quatro judias e, por isso, fizemos a Páscoa judaica”. Uma delas, dona Zelda Isler, contou como sua família sofreu na Segunda Guerra Mundial. “Ela teve que dividir os alimentos, e hoje sempre diz: por favor, não pique nada para mim’. Ela tem suas memórias muito vivas…”, conta Laís.
A decisão de internação numa clínica ou casa de repouso cabe sempre à família e é um momento muito delicado para todos, pois envolve muitos fatores. “Quando eu vejo que a dinâmica da família está muito estressante, pois quem mais sofre é o paciente, eu dou a minha opinião”, afirma a neurologista Ana Luísa.
E por que os idosos com memorias tão vivas e com certa mobilidade estão internados? “São histórias de famílias diferentes e algumas muito tristes, com passados de rupturas, de mágoas ou até mesmo o resultado de uma família sem vínculos”, responde Laís.
E, nesse momento é preciso tratar os idosos acometidos de demência com amor, carinho e muita paciência, respeitando o seu tempo e a sua identidade”, aconselha Ana Luísa.
De acordo com o IBGE, o Brasil será um país de idosos em 2030. E o projeto de Laís vai de encontro à necessidade de novas gestões para encarar o envelhecimento. As ideias da terapeuta ocupacional em dar sentido de vida aos internos não param por aí.
“Estou pensando em propor à clínica passear com os idosos, inseri-los num modelo mais territorial, dar a eles uma relação com seu entorno. Se possível, trabalhar com voluntários para passear em lugares próximos, como por exemplo, assistir a um filme na Cinemateca. Na clínica há muitas atividades. Mas, ali dentro, o que mais ajuda são as visitas, uma conversa com atenção, um afeto”, indica Laís.
Como o futuro só a Deus pertence, viva dona Lígia Monte Molar! Aos 96 anos de idade, boa de prosa, a vizinha da Rua Bagé gosta mesmo é de morar sozinha, passear por aí e cuidar do jardim do seu condomínio. Todos os dias sai, caminhando, para fazer as refeições pelos restaurantes do pedaço. E brinca, esbanjando vitalidade: “Quando meu marido morreu, fechei o fogão e nunca mais cozinhei”.