Lições sobre a soberba em “O Conto da Aia”

Dos sete pecados capitais, a soberba é considerada a raiz de todos os outros.

            Enquadra-se aqui a prepotência, arrogância… Achar-se “superior” ao outro e por isso mais “merecedor” de benesses em detrimento dos demais que não são abençoados com suas honoráveis virtudes.

            Ao acreditar nesse pensamento, a pessoa entende que pode tudo e passa por cima do que for preciso para conseguir o que quer. Cria uma aura artificial de orgulho e poder em torno de si para demonstrar que pode dominar qualquer um. Mas na verdade essa pessoa que é dominada pelos próprios desejos.

            O livro “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, nos traz essa reflexão em certa medida. Lá é retratado o cotidiano na República de Gilead, uma autoritária e fundamentalista nação futura que surge em decorrência dos avanços da degradação ambiental do planeta, afetado por uma atmosfera radioativa que espalha a esterilidade entre as pessoas. Só que os homens da história nunca a aceitam: o problema sempre está na fertilidade das mulheres.

            As mulheres consideradas estéreis são geralmente definidas como “Não Mulheres” e levadas para trabalhos forçados nas Colônias, excluídas completamente do convívio em sociedade por não serem vistas como úteis. Talvez algumas ainda consigam se empregar como Martas, para a realização de serviços domésticos. Mas a melhor opção é claramente se tornar a Esposa de um dos Comandantes.

            Contudo, a subjugação do feminino se torna ainda mais evidente com as poucas mulheres férteis que existem: estas são contratadas como Aias, meramente para fins de procriação. Pois o poder de um Comandante é avaliado mais pela quantidade de filhos que fez do que pelo capital em sua conta bancária.

            Para tanto, é realizado um ritual em que a Aia misticamente conceberia pela Esposa. Um método explicitamente inspirado nas falas de Raquel, uma das mulheres de Jacó na Bíblia.

            As irmãs Raquel e Lia eram casadas com Jacó. A Bíblia relata que Jacó se interessava mais por Raquel e assim Deus atuou em favor de Lia, tornando-a fértil e gerando quatro filhos até aquele momento enquanto Raquel ainda não tinha gerado nenhum. Foi nesse cenário que se desenrolou o trecho abaixo do capítulo 30 do livro de Gênesis, colocado em epígrafe de “O Conto da Aia”:

“Vendo, pois, Raquel que não dava filhos a Jacó, teve Raquel inveja da sua irmã, e disse a Jacó:

— Dá-me filhos ou senão eu morro!

Então se acendeu a ira de Jacó contra Raquel e disse:

— Estou eu no lugar de Deus, que te impediu o fruto de teu ventre?

E ela lhe disse:

— Eis aqui a minha serva, Bilha; Entra nela para que tenha filhos sobre os meus joelhos, e eu, assim, receba filhos por ela.”

Nessa situação, a disputa por ser mais fértil e “abençoada” acarreta numa geração de filhos por muita soberba e por pouco amor.

As Aias são proibidas de terem quaisquer outros tipos de contatos como beijos ou abraços com os Comandantes. Isso geraria afeto. E uma sociedade que é movida por Esposas que se assenhoram de filhos alheios e Comandantes apenas interessados em fazerem seus próprios genes se perpetuarem é uma sociedade completamente desprovida do sentido do afeto.

Mas se a soberba é a raiz dos males, o seu contraponto, a humildade, pode ser a raiz de todas as virtudes.

É aceitar que nós viemos do pó e ainda retornaremos a ele. Que, apesar de caminhos diferentes, todos os seres possuem um valor inestimável no espetáculo da existência.

Muitas vezes diante de dificuldades como a ilustrada pela esterilidade, queremos buscar culpados ou resolver as coisas unicamente visando nossos próprios objetivos.

Porém, agindo com humildade notamos que todos possuem um pouco a ensinar e um pouco a aprender, teremos sempre qualidades marcantes e defeitos crônicos. E por isso podemos nos completar.

O valor de uma pessoa vai muito além da sua mera capacidade para gerar filhos. Isso é um fator físico, mecânico. O verdadeiro valor está na abundância de atitudes que pratica em prol do universo. Na sua essência de alma invisível aos olhos.

Quando alguém compreende essa essência, não importam as dificuldades, esterilidades ou afins: acolhe-se, compreende-se, compartilha-se. Age-se com a humildade de quem aceita que não é perfeito e também aceita a não perfeição do outro.

Por essa razão vale ressaltar a importância do afeto em meio a um ambiente onde impera o egoísmo. Pois o afeto, o respeito e a gentileza são os principais meios pelos quais a humildade pode ser expressa para compensar nossas falhas e multiplicar nossas forças.