Caminho da vida
Caminho de Santiago de Compostela é uma ancestral rota de peregrinação que se estende por toda a Península Ibérica até a cidade de Santiago de Compostela, no Extremo Oeste do Reino da Espanha, onde se acredita estar o túmulo do apóstolo. Desde o século IX, homens e mulheres partem de suas cidades a pé, a cavalo e, mais modernamente, de bicicleta, tendo como destino aquele lugar sagrado, a fim de fazer penitência ou peregrinar, e assim receber perdão dos pecados e indulgência plenária das mãos da Mãe Igreja.
Esse movimento penitencial teve seu auge nos séculos XII e XIII com a passagem de centenas de milhares de viajantes. Hoje em dia, pessoas de todas as idades imitam os passos dos peregrinos medievais e percorrem essa antiga rota; alguns por espírito religioso-cristão, outros por misticismo mais difuso, busca interior ou apenas como uma grande aventura, uma ocasião de praticar o esporte da caminhada em grupo e em condições difíceis. Livros recentes popularizaram o caminho e o fato é que a sempre religiosa Espanha se vê, sobretudo neste Ano Jacobeu ou Ano Santo Compostelano, povoada por peregrinos de diferentes idades, nacionalidades e condições. A pé ou em bicicleta, em ônibus ou parte em carros, dormindo em albergues, ao ar livre ou em hotéis, percorrendo as estradas espanholas, até mesmo em cadeiras de rodas, os peregrinos seguem seu trajeto resolutos, buscando a experiência de caminhar e chegar.
Segundo uma tradição muito antiga, após a dispersão dos apóstolos pelo mundo, São Tiago foi pregar a boa nova do Evangelho em regiões longínquas, passando algum tempo na Galícia, situada no Extremo Oeste da Espanha. Ao retornar à Palestina, foi preso e decapitado, e seu corpo jogado fora das muralhas de Jerusalém. Dois de seus discípulos, Teodoro e Atanásio, recolheram seus restos e os levaram de volta ao Ocidente, de navio, aportando na antiga cidade de Iria Flávia, na costa Oeste espanhola, sepultando-o secretamente em um bosque de nome Libredón. O lugar foi esquecido até que oito séculos depois um ermitão chamado Pelágio começou a observar um estranho fenômeno que ocorria nesse mesmo lugar: uma verdadeira chuva de estrelas caía todas as noites sobre um ponto no bosque, fazendo emanar dali uma luminosidade intensa. Avisado da presença dessas luzes místicas, o bispo de Iria Flávia, Teodomiro, ordenou que fossem feitas escavações no local, encontrando, assim, uma arca de mármore com os ossos do santo. A notícia se espalhou e pessoas começaram a deslocar-se a fim de conhecer o sepulcro do apóstolo. Essa foi a origem do Caminho de Santiago de Compostela.
O Jubileu Apostólico ou Ano Santo Compostelano foi criado pelo Papa Calixto, em 1221. Desde então, toda vez em que o dia consagrado a São Tiago – 25 de julho, quando suas relíquias foram achadas por Teodomiro – cai em um domingo, esse ano torna-se santo, com especiais bênçãos e privilégios espirituais concedidos aos peregrinos. Assim, foram contemplados o ano de 1993, o de 1999, de 2004 e em 2011 isso ocorre outra vez. A rota do caminho de Santiago é o mais extraordinário trajeto de todo o Ocidente. São centenas de construções, sobretudo religiosas, mas também civis, que se deixam contemplar ao longo da peregrinação, constituindo, muitas delas, exemplos maiores dos estilos arquitetônicos que marcaram o Ocidente (românico, gótico, barroco, plateresco e neoclássico). Assim, em 1993 o Caminho de Santiago de Compostela foi declarado Patrimônio da Humanidade por decreto da Unesco. Embora não haja um ponto de partida definido (muitos europeus saem da porta de sua casa, seja lá onde for), a maioria dos modernos andarilhos místicos acaba escolhendo um dos pontos próximos à fronteira francesa.
Trata-se, no caso, de Saint-Jean-Pied-de-Port, Roncesvalles ou Somport. Há em média 20 mil pessoas por ano viajando pelo Norte da Espanha nas três maneiras reconhecidas como formas autênticas de peregrinação: a pé, de bicicleta ou a cavalo. O importante não é tanto a distância percorrida, mas o espírito com que se caminha. Após descer o Monte do Gozo, já entrando na cidade que é a meta da peregrinação, meu coração batia emocionado ao me aproximar da catedral. Entramos, passamos pela porta estreita que conduz à estátua do apóstolo e demos-lhe o tradicional abraço que sela a chegada dos peregrinos.
Na catedral superlotada começava a celebração da eucaristia, a que assisti emocionada junto a meu marido, peregrino comigo pela vida há 36 anos. Quando nos encaminhamos para receber a comunhão, senti, com lágrimas nos olhos, que o caminho de Santiago é uma parábola do que é a vida humana e, certamente, a vida cristã: um caminho que exige esforço e sacrifício, onde o que importa não é chegar primeiro, mas chegar; onde a solidariedade impõe a atenção ao outro, o diminuir o passo para colocar-se ao seu ritmo; um caminho, em suma, que quando chega à sua meta faz esquecer todas as dificuldades diante da alegria de chegar, receber o perdão, participar da mesa do Senhor e sentir-se acolhido na imensa comunidade dos filhos de Deus. A vida cristã, desde seus inícios, foi considerada e chamada de caminho. Caminho de seguimento de Jesus Cristo, o Caminhante de Emaús, que disse de si mesmo: ‘’Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida’’. O caminho de Santiago é mais uma expressão que os cristãos de várias raças e nacionalidades encontraram e encontram, hoje, para seguir Jesus pelos caminhos de terra deste vasto mundo.