Maria Aparecida Alcântara
Com 51 anos de Magistério, a coordenadora de Pedagogia do Unicentro Belas Artes conta como era ser professor na época em que começou a lecionar e o que mudou desde então, quais os valores necessários para ser um grande mestre e ensina como educar os filhos num mundo em que a televisão tornou-se mais um membro da família, sempre tão ocupada
Pedaço da Vila: Como era o magistrado quando a senhora se formou?
Maria Aparecida Alcântara: Desde que me formei muita coisa mudou. Fiz escola pública. Era um desafio se manter numa escola pública porque a exigência era muito grande. Havia a preocupação do professor em transmitir conhecimento e do aluno, em dominar o assunto para reproduzir em sala de aula. Para ser professor era necessário dar uma aula pública. Os jurados, numa sala ao lado, examinavam a aula. O tema era sorteado 24 horas antes. Lembro bem que não tínhamos livros como temos hoje, poucos eram traduzidos – de pedagogia, então, apenas um, de um autor francês. Recorríamos a bibliotecas públicas para desenvolver os trabalhos. Não tinha essa fertilidade acadêmica como temos hoje. Fui bolsista da Belas Artes de Araraquara, uma escola tradicional que era mantida pelo Ciccilo Matarazzo. Sempre fui inclinada para a arte. Tinha um professor que dizia: “Ser professora e artista não dá certo, você tem que largar tudo para ser artista!”.Mas me casei em 1955 e fui me afastando da arte. Escolhi ser professora que, na época, ganhava tanto quanto um juiz de Direito.
P.daVila: Quando optou por Educação Artística?
M.A.A.: Comecei a lecionar como alfabetizadora, mas nunca deixei de cultivar meu prazer pela arte. Em 1961, decidi dar aula de arte para o Ginásio (atualmente Ensino Médio). Como a lei de diretrizes e bases exigia licenciatura, fiz o curso na PUC. Fui convidada a dar aula numa escola na Zona Norte e, em seguida, no Colégio Gonçalves Dias – o meu grande espaço como professora. Lá fui professora, assistente e diretora designada. Tinha paixão pela sala de arte, criei o processo de material comunitário – até então muitos não podiam produzir por falta de dinheiro. Trabalhava com temas que interessavam os alunos. Minha avaliação era feita através de dez itens de auto-avaliação. No começo todo mundo se avaliava dez, mas eu queria saber como eles avaliavam sua dedicação. Estimulava o diálogo numa época em que não havia.
P.daVila: A senhora passou por muitas transformações…
M.A.A.: Conforme fui trabalhando com os alunos, fui errando muito e acertando. A referência de um professor me alertou da necessidade de ter prazer ao aprender, de saber o significado das coisas aprendidas. A aula nunca foi para mim um aluno sentado atrás do outro, na frente de um professor naquela palestra magna. Ensinar é desenvolver dinamicamente, com a sala em círculo, todos interagindo e gerando conhecimento. Tem que ser participativo. Fico incomodada de entrar na sala e ver um atrás do outro – isto me dá um mal estar tremendo. Um colega, de vez em quando, pode ensinar o outro muito mais facilmente por causa da linguagem.
P.daVila: O que melhorou no ensino desde então?
M.A.A.: O diálogo. Eu sou fruto de uma escola sem diálogo. Eu me lembro de um professor de latim que certa vez me chamou para uma pergunta. Eu era magricela e meus ossos até batiam de medo. Aí ele fez uma série de perguntas e me mandou sentar. Então eu perguntei qual era a minha nota e ele respondeu: sete. Retruquei que não tinha errado nada. E ele me falou: “Então a senhora aprenda de hoje em diante que 10 eu dou pra Deus, 9 para os meus pais, 8 para mim e de 7 para baixo para os alunos. Dificilmente a senhora vai tirar outro 7 comigo”. Este era o professor da época. Aquilo não estava no que eu queria para mim. Até hoje eu não gosto de inglês por causa de um professor pedante. Ele nunca procurou saber se eu estava entendendo ou gostando de sua aula. O carinho e o afeto são fundamentais para ensinar, o autoritarismo serve só para as pessoas inseguras.
P.daVila: E o que piorou?
M.A.A.: A Educação virou um negócio e o professor tem que ter a sensatez de equilibrar as questões materiais e humanas. Na medida em que o capital passa a assumir o controle da vida das pessoas, os valores éticos, morais são deixados de lado. Tanto na educação básica e no ensino superior existem poucos educadores e muitos professores. Virou um negócio e se eu invisto numa escola preciso de retorno. O educador deve transcender essa educação profissional. Ele se preocupa com conteúdos, mas antes de mais nada, é preciso ter a sensibilidade para poder conduzir sua aula, buscando estimular, entender, compreender e com afeto por limites sem abusar do autoritarismo. Hoje você vê um professor ganhando muitíssimo mal, vai desmotivado para dar aula…
P.daVila: E na formação do professor?
M.A.A.: Mudou tudo. Hoje todos se preocupam não só com a auto-realização, mas com o mercado de trabalho. Então os valores estão muito mais externos porque as famílias e a sociedade estão muito diferentes do que eram. Hoje o pai e a mãe trabalham, falta profundidade nas relações. Se o professor não tiver uma boa formação humana, profissional, emocional, ele também viverá dentro dessa realidade. Hoje precisamos de um profissional mais preocupado com valores: tem que ser competente na sua formação e preparado humanamente também. Ele deve provocar a reflexão, não a reprodução. Ele tem que trabalhar o senso crítico, mas não pode ser só a critica pela critica – tem que ser construtivo. É necessário estabelecer um dialogo, uma dialética que traga a pergunta e a resposta. Quando você estimula a pessoa a pensar e refletir, começa-se a estruturar o pensamento e a pessoa começa a ponderar as coisas pela sua ótica de vida. No curso superior, vemos pessoas preocupadas com a formação da cidadania e da sociedade que não têm tempo de cuidar dos seus filhos. Então isso é culpa da estrutura social. Temos que ser malabaristas para não descuidar dos nossos filhos – eu não posso jogar essa responsabilidade na mão do outro.
P.daVila: Dizem que o professor tem que ser um artista…
M.A.A.: Teve uma época que eu coordenei um projeto, o Movimento Coral do Estado de São Paulo, no Teatro Sérgio Cardoso. Numa das apresentações eu fui apresentadora. Quando entrei no palco, senti essa coisa do artista. Por algumas horas me senti uma artista no palco. Entendi que, na verdade, quando se está na sala de aula você está num palco. Você tem que falar para todos e mantê-los plugados. É preciso chamar o aluno a participar e em pouco tempo ele se interessará tanto que a gente terá de controlá-lo! O educador é aquele que ilumina os passos por onde o educando deve passar.
P.daVila: Como fazer as crianças lerem?
M.A.A.: Cultivando o ato de ler, discutindo e refletindo sobre sua leitura. A leitura faz transcender a realidade, construir um mundo de imaginação – é fundamental. Devemos levantar problemas para o aluno responder através da leitura, incitar a reflexão contínua sobre o que lemos, estimulá-los. O verdadeiro educador é aquele que busca nos alunos o seu interesse e se eles não têm, temos obrigação de buscar formas para despertá-lo.
P.daVila: A mãe deve acompanhar os deveres de escola dos filhos?
M.A.A.: Ela deve estimular o filho a fazer lição de casa, mas nunca fazer por ele. Se fizer isso, vai criar um preguiçoso. Vejo a educação como a formação humana. Eu sou da linha do Paulo Freire: ninguém ensina nada a ninguém, você tem que motivar o outro a construir o seu conhecimento. Hoje as fontes de informação são muito maiores e, às vezes, devemos adotar posturas autoritárias.
P.daVila: E como educar em casa?
M.A.A.: A criança de hoje está muito mais informada do que podemos supor. Muitas vezes, o que ela não fala com você em casa, fala fora. A banca de jornal, então, é uma fertilidade… Você não precisa comprar nada, basta ficar lendo um pouco ali, por 15 minutinhos. A televisão, através das novelas, traz coisas que jamais você poderia assistir antes da meia-noite. Qual é exatamente o papel dos pais? Tem gente que proíbe certos canais, o que não deve ser feito. A novela precisa ser trabalhada, discutida. A realidade não pode ser ignorada! Outra coisa muito importante é o “não”, se os pais não disserem, a vida vai dizer. Deve-se mostrar as conseqüências da mentira e deixar claro o que é a verdade… Agora, se eu digo a verdade e apanho, vou contar mentira. Hoje vemos crianças com muitas atividades: balé, música, jiu-jitsu etc e que não têm tempo nem para brincar. O brincar é fundamental, desenvolve a imaginação. A função semiótica começa construir bem cedo seus símbolos. É preciso haver mais diálogo na família, que está fisicamente próxima, mas não está unida espiritualmente. É fundamental reservar um tempo para a família, ser mais presente. Mesmo quando o jovem é mais fechado, ele precisa colocar para fora o que sente. O diálogo é o integrador da família.
P.daVila: Como a senhora vê a Educação no Brasil hoje em dia?
M.A.A.: A minha grande preocupação, como educadora, é ver que o ensino no país não tem prioridade. Hoje não tem mais o mesmo prestígio. Isto me entristece, pois cada vez mais temos pessoas excluídas – sem emprego, comida, trabalho, e que ficam a mercê dos vícios. Se o país investisse mais em educação, menos se gastaria em penitenciária e Febem. Investir na Educação deve ser prioridade de um povo que tem como maior preocupação o seu homem de amanhã. A Educação representa a grande via de acesso para a construção da cidadania, e o legítimo caminho para a conquista dos ideais almejados pela humanidade.