STELLA FLORENCE
Com um estilo particular para tocar em assuntos que são tabus na sociedade, nossa entrevistada tem conquistado os leitores de maneira franca e refinada, com obras que rasgam o verbo quando o assunto é amor e sexo. Formada em Letras, ela revela como, de súbito, desistiu do emprego de secretária para tornar-se escritora, e como conquistou o prefácio de Mário Prata logo no seu primeiro livro. Apresenta, ainda, Os Indecentes, sua mais nova obra, e destaca a importância da Vila Mariana em sua vida.
Pedaço da Vila: O que levou você a abandonar sua carreira de dez anos como secretária para se entregar incondicionalmente à literatura?
Stella Florence: Meu sonho sempre foi ser secretária. Eu brincava disso, quando era criança. Ganhei uma sanfona e, em vez de tocá-la, eu ficava datilografando. Antes de iniciar a faculdade de Letras, me formei, em 1987, num curso de secretariado, e logo em seguida comecei a trabalhar como secretária. Trabalhei por dez anos e, num determinado dia, me fiz a seguinte pergunta: “O que estou fazendo aqui?” Como não encontrei respostas, peguei minha bolsa e fui embora, para nunca mais voltar. A decisão foi uma necessidade interna imperiosa.
P.daVila: Antes de seguir a literatura, já alimentava a pretensão de ser escritora?
S.F.: Nunca pensei em ser escritora. Na adolescência eu gostava de escrever para mim, em um diário; brincava de fazer novas versões para contos e novelas. Embora eu não tivesse a consciência, esse exercício foi muito bom, pois eu recriava a mesma cena, o mesmo lugar, o mesmo drama, e melhorava a cada dia. Nunca gostei de novelas, sempre escrevia as minhas, e eu era sempre a protagonista (risos). Depois, fiquei muito tempo sem escrever, mas sempre lendo muito: o que considero a primeira característica de um escritor. Quando, aos 29 anos, voltei a escrever, foi como se tivesse retomado algo que já fazia parte de mim. Minha escolha foi uma espécie de lucidez interna, de fé: eu tinha certeza de que daria certo. Todo mundo a minha volta duvidava, menos eu!
P.daVila: Quais as dificuldades que você encontrou e como foi lançar seu primeiro livro?
S.F.: Acho que a maior dificuldade é como pagar as contas: a profissão raramente fornece o necessário para alguém se sustentar. E literatura ficcional é o que menos vende no Brasil. Quando decidi ser escritora, comecei a escrever compulsivamente, e as histórias saíam prontas. Como sempre li muito, o sentido estético da literatura formou-se dentro de mim, e foi surgindo no livro de forma natural. Na época, fiz um curso de literatura que se chamava Escola de Escritores, um projeto com a finalidade de ensinar os meandros do mercado editorial. O objetivo não era ensinar alguém a escrever, mas reunir pessoas relacionadas ao mercado literário. Todos eram loucos por livros, saraus… E o curso acabou funcionando como uma grande reunião! Isso me despertou o interesse por conhecer mais profundamente a vida do escritor. E foi muito bom para eu já começar a sentir as dificuldades do mercado editorial brasileiro.
P.daVila: Lançado em 1997, seu primeiro livro Hoje acordei gorda teve o prefácio assinado por Mário Prata. Como ocorreu essa parceria?
S.F.: Ao terminar o Hoje acordei gorda, vi que o Mário Prata, de quem eu sou fã, acabara de lançar O diário de um magro. Resolvi enviar por e-mail os originais do meu livro a ele e, sem me conhecer, ele não só leu meu livro — o que foi incrível —, como se ofereceu para fazer o prefácio! Foi o melhor presente que uma escritora iniciante poderia receber! Eu, que sou uma leitora assídua dele, que sempre comprou seus livros e comentou suas crônicas… Sem pedir, ele se prontificou a fazer o prefácio, o melhor que já vi! Nele, Mário disse que Stella Florence não existe; que era um pseudônimo dele, e que havia resolvido escrever como uma mulher. Até contou como decidiu criar o pseudônimo. Ainda hoje algumas pessoas acreditam que foi ele quem escreveu o livro. Para mim isso é uma grande honra, pois Mário me ajudou muito com os detalhes técnicos do mercado editorial. Considero-o meu padrinho na literatura. Ele e Marcos Rey dão dicas preciosas para novos escri-tores. O Marcos Rey me ajudou muito e me incentivou a ir pelo caminho da crônica.
P. daVila: De forma franca e com toques de humor, o livro aborda os confrontos da mulher diante da estética. Por que escolheu esse tema tão delicado?
S.F.: É algo que mexe comigo. Eu sempre lutei com a balança. Nesse início de carreira eu escrevi dois livros ao mesmo tempo: Hoje acordei gorda e Por que os homens não cortam as unhas dos pés. Esses textos eram as minhas preocupações naquele momento. Eu queria falar sobre esse sentimento de se sentir gorda, não o de ser. Embora não seja gorda, há momentos em que a pessoa se sente gorda. E como isso me incomodava muito, decidi falar: sentia falta desse tema na literatura brasileira.
P.daVila: O livro é uma crítica aos moldes estéticos da sociedade contemporânea?
S.F.: Claro! Nós estamos sob ataque e temos de gritar contra isso! Tudo ao redor nos impõe uma estética perversa e antinatural. Mulher tem de ter seios duros, de maçã, e bumbum de pedra. Homem tem de se depilar e fazer implante nos cabelos. E todo mundo está cada vez mais triste… Infelizmente, nos últimos 20 anos, eu percebo uma plastificação no corpo humano. O corpo masculino está igual ao feminino: os dois não têm pêlos, os dois têm um peitoral saltado, os dois devem estar tonificados…. Onde isso vai parar?
P.daVila: Os anseios e as angústias femininas diante das relações amorosas que suas obras expressam são experiências pessoais?
S.F.: Mário Quintana, poeta que eu adoro, tem uma frase sobre isso: “Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão”. Assino embaixo! Em minhas crônicas, o humor é meu aliado: por meio dele cumpro o primeiro papel da literatura, que é entreter, e ainda suavizo sem banalizar temas mais delicados. Rir de si mesmo cura! Escrevo sobre o que me toca, me emociona ou me incomoda.
P.daVila: O tom bem humorado dos seus livros é para suavizar sérios tabus de nossa sociedade?
S.F.: Toco em assuntos sérios, polêmicos. Quando você utiliza o humor, você pode falar de qualquer coisa. Meu primeiro livro, Hoje Acordei Gorda, é indicado pelo Ambulim – SP como leitura terapêutica para pacientes com bulimia. Isso é muito gratificante, um resultado que eu não esperava de um livro ficcional. Primeiro você tem de entreter, para depois passar algo mais, algo que incite o pensamento a respeito da problemática apontada no livro. Hoje, mais do que nunca, as pessoas buscam na comida uma válvula de escape para esconder seus problemas. Quando você está gordo, seu problema é estar gordo. Mas quando você emagrece, seus verdadeiros problemas aparecem, e você precisa enfrentá-los. Quando isso ocorre, é tão insuportável para as pessoas que elas acabam engordando novamente para encobrir esses verdadeiros problemas. É o tal efeito sanfona!
P.daVila: Uma de suas obras mais frenéticas, é o livro 32, que nos apresenta uma mulher em flerte sexual. Como surgiu o tema?
S.F.: 32 é um livro sobre o desencanto romântico. Retrata essa compulsão afetivo-sexual de você ficar trocando uma pessoa por outra e nunca se sentindo seguro. É como se você pisasse em pedras de isopor. Não dá para parar nelas, tem de ficar pulando de uma para outra. Chega ao ponto em que a protagonista percebe que, não só ela tinha virado um número na vida dos homens, como ela tinha feito dos homens um número também. Angustiada com essa situação, ela resolve fazer uma tatuagem para cada homem com quem teve relação; não como homenagem, mas, sim, como um dreno para sua dor, para tentar tirá-los de dentro e colocá-los em sua superfície. Essa protagonista foi construída com base na Blanche, criada pelo escritor Tennessee Williams.
P.daVila: Fale sobre seu livro mais recente, Os Indecentes, lançado pela Rocco, que reúne suas 100 crônicas mais perversas sobre a relação sexual.
S.F.: Escrevo sobre amor e sexo há muitos anos, é um tema que trato com a mesma simplicidade que qualquer outro. Os Indecentes é a reunião das minhas 100 melhores crônicas sobre amor e sexo dos últimos 10 anos, e nele expresso exatamente aquilo que todas as pessoas queriam dizer, mas têm vergonha. A gente ainda vive numa mentalidade provinciana, como se ficássemos pensando sobre o que vão falar da gente. Vivemos numa suposta liberdade sexual. O brasileiro é superconservador, retrógrado e preconceituoso ao extremo. Falar sobre sexo ainda causa muito incômodo — vejo isso na minha família, nos meus amigos e nas pessoas ao meu redor. Os Indecentes é aquele livro que você senta e pensa: “Nossa, finalmente estou vendo um mundo igual ao meu!”.
P.daVila: Você sempre viveu na Vila Mariana. De que forma o bairro a influencia e inspira seu trabalho?
S. F.: Nasci na Vila Mariana e não me imagino morando em outro bairro. Não tenho carro, faço quase tudo a pé: vou ao banco, centro espírita, cabeleireiro, médico, ao voluntariado; tudo no bairro. E ainda trabalho em casa, o que torna meu dia a dia mais simples. Só aqui na Vila Mariana eu me sinto realmente em casa. Peguei uma fase do bairro muito boa, a época de brincar na rua, de ir à casa dos amigos, sair na rua sozinha, andar de bicicleta pela calçada… Hoje não é a mesma coisa. Essa foi uma fase que a minha filha não pegou. Na minha infância havia apenas dois prédios na rua Morgado de Mateus. Gosto de morar aqui; onde todo mundo tem a sensação de estar em casa. Sempre morei nesse pedaço. Minha família toda mora aqui ao redor. Temos nesse pedaço da vila uma relação mais humana, em que você conhece todo mundo, se não tiver com dinheiro pode pagar depois. Quando você tem uma relação mais íntima com o bairro, você também estabelece uma relação mais íntima com quem trabalha aqui. A gente tem essa sensação de vila, de cidade pequena, de proteção contra essa globalização.