AURO DANNY LESCHER

O psiquiatra, fundador e coordenador do Projeto Quixote, ligado à Unifesp, desde 1996 vem mudando a história de crianças, jovens e famílias em situações de risco. Por meio da arte, educação e saúde, criou alternativas eficientes para desafios cotidianos, como abuso de drogas, violência e ausência de referências. O programa Refugiados Urbanos, por exemplo, realizou só em 2011, 2.555 abordagens de rua e ofereceu atendimento psicossocial a 209 pessoas. Da nova sede, aqui na Vila Mariana, nosso vizinho — morador da rua Capitão Macedo — fala da ação policial na cracolândia, relata a dramática situação dos viciados em crack e defende que só com criatividade, afeto e expressão é possível transformar pessoas-zumbis em cidadãs.

Pedaço da Vila: Fale sobre o Projeto Quixote.

Auro Danny Lescher: O Projeto Quixote já tem 17 anos. Nesse tempo, ele foi crescendo: são mais de 80 profissionais de várias formações, incluindo médicos, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, psicopedagogos, pessoal de gestão, administrativo… O espectro de ação do Quixote são vários programas, dirigidos a crianças e adolescente que vivem em situações difíceis no âmbito existencial, clínico, pedagogico, devido à violência ou à falta de possibilidade de estar em outros contextos de sociabilidade mais interessantes. O programa Cuidar, por exemplo, está dentro de um programa clínico do Quixote que lida com a questão da violência sexual e doméstica. Nós somos referência na região Centro e Sul de São Paulo. O conselho tutelar, a escola, a família, os juízes ou as próprias crianças da comunidade encaminham crianças e adolescentes para o Quixote, seja para participar de nossas atividades culturais e artísticas seja para atendimento clínico ou para um acompanhamento. 

P.daVila: Quais as atividades oferecidas pelo Projeto Quixote?

A.L.: São vários ateliês, que acontecem nos períodos de manhã, tarde e noite, além de cursos e outras atividades. Todo esse processo foi se profissionalizando e crescendo, o que resultou nesta nova sede — uma conquista depois de 10 anos de muita insistência e persistência. Tivemos sorte, porque a Pró-Vida, que é uma entidade grande e que funciona com a doação de seus associados para investirem na área social,  tem um programa para construção de sedes. Graças a eles, conseguimos construir a nossa — um prédio de primeira categoria, com grande estrutura, construído nesse terreno lindo, doado pela Prefeitura, aqui na Vila Mariana.

P.daVila: Com a nova sede inaugurada em outubro de  2010, o Quixote cresceu?

A.L.: Sim. Mas as dificuldades continuam as mesmas, agora aumentadas porque a responsa-bilidade é maior. A sustentabilidade de uma organização como essa, que gira em torno de 3,5 milhões de reais por ano, necessitou de todo um desenvolvimento institucional, sobretudo no processo de administração. Nós éramos — e ainda somos — um bando de ‘psicocoisas’ que nasceram de uma Escola Paulista de Medicina “multidisciplinar” e que tiveram de aprender um monte de coisas com esse modelo de gestão. Esse período de crescimento é muito legal, muito gostoso; mas também é muito desgastante. Então fomos estruturando um setor de gestão, profissionalizando tudo isso, pois somos especialistas em gente, em criatividade — no sentido da vida e da morte. É um processo inerente ao crescimento, muito bom e muito difícil ao mesmo tempo. Uma das coisas que nós estamos desenvolvendo é a possibilidade de o Quixote ser um modelo de sustentabilidade de uma organização social. O futuro não é ficar dependendo do poder público, tampouco da boa vontade, responsabilidade ou culpa dos outros. O projeto não pode depender dos ricos que doam para os pobres coitados. 

P.daVila: Por que escolheu o nome Quixote?

A.L.: Por causa do Dom Quixote do livro que Miguel de Cervantes escreveu, em 1604, e que há 4 séculos é best-seller. Ele é um perso-nagem tão forte e ambíguo, que confunde o sublime e o ridículo. O Cervantes falava que querer salvar o mundo é sublime, mas julgar-se o salvador é ridículo. Desde o início, a gente quer salvar o mundo, mas sabe que não é o salvador. Nós queremos que nossas ações clínicas, sociais e pedagógicas ajudem a transformar o mundo de crianças e adolescentes que vivem na violência, nas drogas… Essa é a missão do Projeto Quixote: ajudar a transformar o mundo dessas crianças. A Universidade Federal de São Paulo é a principal parceira estratégica do Quixote. 

P.daVila: E quanto ao programa Refugiados Urbanos?

A.L.: Esse programa, que tem sede na Praça da República, existe há 10 anos, dentro do programa de atendimento do Quixote, que tem o tríade: atendimento, conhecimento e divulgação. Há atendimento direto, sempre com a reflexão sobre o caso, porque queremos inspirar políticas públicas em outras ONGs, baseadas no que fazemos para poder mudar mentalidades. Falo isso, porque hoje temos ciência, dados. Essas crianças do centro da cracolândia são como exiladas na sua própria cidade. Gosto de escrever — adoro poesia —, e usava o termo ‘exílio dentro da própria cidade’ como uma força poética. Escrevia sobre a criança pobre que se ferra. Em cima de pesquisas que realizamos com essas crianças que saem da periferia para o Centro, percebemos que elas têm a mesma dinâmica  dos deslocamentos humanitários em regiões de conflito — como em Darfur, na África, onde pessoas do Sudão deslocam-se dentro do seu próprio país para sobreviver e buscar um refúgio — às vezes até em um outro país, onde possam sair de uma situação de privação e violência. Pensam: ou eu fico e morro ou eu vou e vivo. Para isso, esses refugiados  carregam coragem, ousadia, desespero, angústia, dor…  Pensar em cracolândia e achar que isso é uma questão do território do Centro de São Paulo é uma visão muito parcial, muito pouco eficiente do ponto de vista de qualquer estratégia que se queira criar.  Partir do pressuposto de que a cracolândia é o território central da droga, limitado por aquelas 400 pessoas-zumbis que moram lá, é muito estreito. Estamos diante de questões muito complexas, e é importante não simpli-ficarmos, elegendo um dos fios: o da polícia ou o da psiquiatria; isso é negar toda a complexidade. Por exemplo: simplificar ao defender a internação compulsória, como se todos fossem toxicômanos e correndo risco de vida ou como se todos fossem bandidos delinquentes e traficantes. A meu ver, a questão da cracolândia é como uma cebola, cheia de camadas. Cada camada, cada casca dessa cebola, é um nível, um universo de entendimento: o policial é um, o psiquiátrico é outro, os tipos de viciados são outro, os traficantes, que são diferentes, outro. Nós vemos que a mesma dinâmica que encontramos nas crianças e nos jovens da região metropolitana  é a mesma dos seres humanos em regiões de conflito, que migram tentando sobreviver. Não é uma questão de São Paulo, é uma questão planetária. No mínimo, temos de ampliar a abordagem para as cidades vizinhas da capital.

P.daVila: Então o sr. quer dizer que o problema não se fixa na cracolândia? 

A.L.: Eu falo de como a sociedade vive, da questão dos valores, da necessidade material… Temos um abandono em vários níveis, que chega a uma situação dramática: na perda do próprio corpo e do próprio sonho, na perda das perspectivas e da razão de existir. É como os africanos que saem do Sudão e vão para Darfur buscar ajuda no campo de refugiados, onde vão encontrar o menos pior. Ali vão encontrar um monte de médicos Sem Fronteira, Cruz Vermelha e todo um aparato humanitário que vai, no mínimo, acolher aquela dor intensa, dando encaminhamento, um a um, daquilo que é mais necessário. Há casos de gerações inteiras que vivem nos campos de refugiados, na África, na Ásia, no Oriente Médio. No Brasil, a cracolândia é como se fosse um campo de refugiados informal, e precisamos resolver o problema humanitariamente. O nosso programa “Refugiados Urbanos” parte do pressuposto de que essas crianças e esses jovens não são precoces toxicômanos, são seres humanos, que vivem em uma situação dramática de desenraizamento do seu próprio território, da sua família, da sua escola, da sua vila, do cheiro do bolo de fubá que suas avós preparavam quando tinham 2 ou 3 anos. Nós estamos falando, no caso, de crianças e jovens que vivem em uma situação que é  psicologicamente  terrível para todos os seres humanos que vivem nessa mesma situação. Isso se chama des-territorialização, desenraizamento, seja da criança de rua, seja do soldado no front do Vietnã, que usa a heroína para aguentar a barra da guerra. Todas essas situações cursam com um fenômeno muito humano: substâncias que sempre existiram e que sempre irão existir, e que a gente bota para dentro do corpo, seja fumando, bebendo, cheirando, picando — isso porque ainda não inventaram formas diferentes muito mais excitantes. Ou seja, situações assim, de conflito psicológico insuportável, cursam com o uso de substâncias muito úteis para os seres humanos, porque seus efeitos servem para entorpecer, alterar a percepção sobre o mundo interno e externo.

P.daVila: Então, os antidepressivos também entram nessa categoria…

A.L.: O buraco é mais em cima… Não estamos falando de traficante, mas sim de uma cultura do entorpecimento. Todo mundo toma benzodiazepínicos, antidepressivos, ansiolíticos porque a sociedade precisa. Eu tenho um artigo de 15 anos atrás que chama “Crack ou Prosac”. Acho que o nosso destino não é optar entre o crack ou o prosac, pois temos grandes condições para inventar coisas muito inteligentes, desde que a gente não negue a complexidade das coisas —  a  aliás, muito menos vendável do que a simplicidade das coisas. A “internaçãocompulsória para 400 pessoas” é mais fácil de vender, para tentar resolver o problema, do que qualquer metodologia. São 400 pessoas-zumbis, privadas de sua própria alma —  são o núcleo da cebola.

P.daVila: Isso quer dizer que a internação compulsória não é a melhor maneira de se resolver o problema?

A.L.: Vamos dizer que internação compulsória seja eficiente e resolva a vida dessas 400 pessoas; mas, por ser uma situação complexa, em que a produção é industrial, e a resolução, artesanal, daqui a algum tempo outras 400 pessoas surgirão. E aí voltamos à complexidade das camadas da cebola: o traficante, a polícia, o território, as ONGs, os sujeitos vivendo essa situação, o poder público, as eleições, a Copa do Mundo. A meu ver, é uma oportunidade de mostrar mais do que a resolução de uma questão material: é revelar a complexidade da situação, e provar que essas pessoas não são precoces toxicômanos, são refugiados urbanos — estão  dentro da própria cidade ou da região metropolitana.

P.daVila: Essa condição é o resultado de uma sociedade equivocada?

A.L.: E que produz um subproduto humano que é um resíduo do sistema — um resíduo do resíduo do resíduo —, é a raspa do tacho, e, portanto, a situação é tão dramática. A gente entende que a função das drogas, nessa situação de desenraizamento, na maioria das vezes é tornar suportável o insuportável: é melhor eu, criança de rua, da Praça da Sé, ficar num esquema imbecil e imbecilizante de fissura — pipar, fissurar, pipar —,  pois, do ponto de vista do metabolismo psicológico, eu convivo melhor com esse drama, de ser um dos refugiados da cracolândia, do que com o drama de não estar com a minha mãe, não estar com o meu pai, de a escola não ficar comigo, de não pertencer a nenhum território. É um total abandono… Então, é mais fácil eu ficar ligado na fissura, em busca de uma pedra — que torna suportável a vida insuportável —, ou ficar face a face com o insuportável?

P.daVila: Eles têm consciência de que estão se matando?

A.L.: Eu não sei se eles chegam a esse nível de informação: eu quero a morte. Talvez inconscientemente, sim. É mais um fluxo que existe e que organiza essas pessoas, dando noção de pertencimento, tipo:  tudo bem que eu sou o cocô do cavalo do bandido, mas eu estou entre os cocôs dos cavalos dos bandidos e estou há dois meses como prioridade da mídia paulista —  olha a visibilidade que tenho! Claro que isso tudo não é consciente. Quando o cara do Sudão vai pra Darfur, ele vai para não morrer. Lá ele será acolhido e encontrará o trabalho humanitário.

P.daVila: Então, o destino da cracolândia seria o caminho da sobrevivência?

A.L.: Sim, e o desafio do Projeto Quixote, desde os anos 90, sempre foi o vínculo. O que essas pessoas  aprenderam da vida? A não confiar muito no outro ser humano.  Então, são crianças muito defendidas, não adianta se aproximar com a carinha bonitinha… Para eles confiarem em você, existe toda uma estratégia, desenvolvida ao longo de tanto tempo. Por exemplo: temos a mochila terapêutica. Um de nossos E.T. (Educador Terapêutico) encontrou um menino que estava fissurado por pedra lá no Centro. Aí o E.T. sacou de sua mochila um objeto moderníssimo que o menino nunca viu: um vidro com uma areia colorida dentro, que marca o tempo. O E.T. encostou a ampulheta no menino, e por 3 minutos o garoto ficou olhando a areia. Depois desse tempo, a fissura passou — claro que ele vai ter outra fissura, mas naquele momento o E.T tem com o menino um campo muito legal de pensar na vida. Vi uma entrevista do poeta Ernesto Sábato falando sobre a cena do imigrante que observa, da polpa do navio, a costa do seu país se distanciando, sem saber se algum dia ele vai voltar a vê-la. É uma cena tão forte que não deveria se chamar Pátria, e sim Mátria. Esse é o nosso desafio atual: o rematriamento.

P.daVila: De que maneira?

A.L.: O refugiado que foi para a cracolândia para se manter vivo encontrará, junto com a droga, um monte de coisas, entre elas a violência; mas também terá a oportunidade de encontrar o E.T., ou uma outra ONG,  gente legal. Tudo isso abre um universo para ele querer pensar na vida. O projeto Refugiados Urbanos é financiado pela própria

prefeitura, no entanto nosso grande objetivo é não depender tanto do prefeito. Devo ressaltar que os secretários municipais Eduardo Jorge (Verde e Meio Ambiente) e José Gregório (Direitos Humanos) são grandes aliados. 

P.daVila: E hoje, qual é o maior desafio do Quixote?

A.L.: É o rematriamento, nem que isso leve um ou dois anos, várias idas e vindas — porque não é uma coisa retilínea, é muito caro, difícil, doído. Quando um exilado está no exílio, ele busca algo para sobreviver. O exílio é profundamente transformador. E qual é o exilado que não deseja rever a sua mátria de um jeito ou de outro?  É importante dizer que não sou contra internação compulsória e policiamento.  Estamos falando de uma situação dramática, de um campo de refugiados, e é claro que a polícia vai ter que prender traficantes — porque essa é a função dela. Acredito que a psiquiatria vai ter que responder às demandas agudas de sofrimento psicológico e psiquiátrico que, algumas vezes, chegam a uma intensidade que justificam uma internação compulsória. Embora essa não seja nossa proposta, não é o que temos feito, e não é o que nossos resultados demonstram. Nosso trabalho é conhecer as famílias de onde esses refugiados urbanos saíram. Não estamos preocupados com a cracolândia, mas com o rema-triamento. Dez anos depois, a nossa metodologia não é um conceito abstrato da cabeça de um poeta romântico: partimos de princípios que não negam a realidade. Eu não sou contra internar, mas imagine a situação de um campo de refugiados: ali a abordagem não é nem psiquiátrica nem policial, tem que ser humanitária! É uma questão planetária: dentro do Direito Internacional da ONU existe a categoria dos refugiados. Por exemplo, os afegãos que tiveram de sair de suas mátrias por questões de conflito e chegaram, por exemplo, em Porto Alegre ou em São Paulo, são amparados pelo Direito Interna-cional da ONU. São direitos que os refugiados têm de receber do governo: aprender a língua, uma verba mensal, um lugar onde morar, capacitação profissional — tudo isso está dentro do estatuto humanitário dos direitos humanos. São questões planetárias, não ligadas apenas à cidadania brasileira ou de qualquer outra nacionalidade. É uma questão da civilização, que envolve questões ambientais, de desigualdades… Sou tão responsável pelas crianças de rua na cracolândia ou das que estão morrendo em Darfur quanto você ou o Kassab.

A sociedade vive no século XXI e ao mesmo tempo na Idade da Pedra — e, no caso da cracolândia, literalmente. Esse mundo morreu e está nascendo um outro, com mentalidade mais elevada — as coisas já estão mudando. Não vamos abrir mão dessa percepção!