Fernando Fernandes

Nascido na Vila Mariana, Fernando Fernandes sonhava ser jogador de futebol até trocar o esporte pela carreira de modelo. Em 2009, sofreu um acidente de carro que o deixou paraplégico. E foi pelo esporte, na canoagem, que direcionou sua vida e começou a fazer história, tornando-se Tetracampeão Mundial da categoria e criando um instituto  dedicado à inclusão social. Fora dos jogos Paraolímpicos por uma alteração no modelo de classificação, ele foi comentarista dos boletins do evento na Rede Globo. E quer mais: irá estrelar uma série no Canal Off, na qual desafiará a natureza extrema. Alguém duvida que ele será capaz?

Pedaço da Vila: Você viveu na Vila Mariana até os 15 anos. O esporte começou no pedaço? 

Fernando Fernandes: Eu nasci na José Antônio Coelho e passei a minha vida inteira no bairro, fiz muitas amizades. Estudei nos colégios da região, no Metropolitano, ali no Paraíso, no Benjamin Constant, e no Bilac, na Praça da Árvore. Como eu jogava futebol, sempre estava mudando de colégio. O esporte sempre fez parte da minha história. Meu sonho era ser atleta profissional de futebol. Treinava na escolinha do Portela, que ficava no Paraíso, e na Portuguesinha da Vila Marina, onde jogava todos os dias. Passei por algumas categorias de base, me profissionalizei, mas não dei continuidade.

Pedaço da Vila: E a carreira de modelo?

Fernando Fernandes: Foi paralelamente ao esporte. Aos 17 anos desisti do futebol para ser modelo. Mudei para Nova York, onde comecei a participar de grandes campanhas e desfiles, como o da Calvin Klein. Logo que voltei para o Brasil estava correndo no Parque Ibirapuera, onde sempre treinei, e fui abordado por um olheiro que me perguntou se eu queria participar de um programa de TV. Sem grana, após tomar um calote da agência, aceitei e, uma semana depois, já estava dentro da segunda edição do Big Brother Brasil.

Pedaço da Vila:  Isso em 2002… Como foi essa participação?

Fernando Fernandes: Foi uma experiência totalmente diferente, porque era um programa ainda novo. Eu não tinha essa relação com as câmeras me filmando o dia todo. Foi sensacional. Não consegui ganhar, mas foi algo bem interessante…

Pedaço da Vila: Depois do programa você voltou a ser modelo até sofrer um grave acidente em 2009…

Fernando Fernandes: Estava trabalhando como modelo, embora não quisesse mais isso há muito tempo — era uma época em que procurava me encontrar … Em 2009, fui convidado para fazer a campanha mundial de perfume da Dolce & Gabbana, ao lado da Naomi Campbell. Quinze dias antes de a campanha ser lançada eu me acidentei. Tinha pegado forte nos treinos, comido pouco, dormi ao volante à noite e quando acordei, vi que estava no hospital, sem mexer as pernas. 

Pedaço da Vila: Você diz que o acidente fez você se reencontrar. Como foi esse processo?

Fernando Fernandes: Eu vi que iria perder a oportunidade de participar do lançamento da campanha, de ter um retorno financeiro grande para que eu pudesse largar a moda e voltar a viver do esporte. Depois do acidente, tive que recomeçar a minha vida de uma forma diferente, e vi que o que havia sobrado era o meu dom e o prazer pelo esporte. Foram o que me fez começar uma nova vida, aprender a fazer tudo de modo diferente.

Pedaço da Vila: A canoagem foi muito importante para a sua recuperação, que aconteceu no centro de reabilitação do Hospital Sarah, em Brasília. Como foi esse encontro?

Fernando Fernandes: O centro usa o esporte como forma de reabilitação. Ali acabei conhecendo vários esportes, e um deles foi a canoagem. Imediatamente decidi que seria um canoísta e comecei a investir nisso. Mas fui escolher um esporte que quase ninguém praticava. Comecei a dar ênfase na minha vida e a colocar a canoagem como prioridade. Era minha única alternativa.

Pedaço da Vila: Um dos momentos marcantes no seu processo de recuperação foi a sua participação na São Silvestre de São Paulo, no final do mesmo ano. Como foi esse desafio?

Fernando Fernandes: Eu tinha perdido a sensação de capacidade e precisava me reencontrar de alguma forma; naquele momento, com seis meses de lesão e oito pinos na coluna, precisava de um desafio grande. Coloquei na minha cabeça que iria participar da São Silvestre. O plano A da minha vida era voltar a andar, mas eu precisava traçar um plano B, caso não voltasse. A prova era de 15 km. Passei a dedicar todas as minhas horas pensando nesse objetivo. Para mim, até então, correr 15 km com as pernas já era difícil. Cheguei lá e foi uma coisa absurda. No meio da prova furou o pneu da minha cadeira e minha mão ficou em carne-viva. Deu tudo errado. Mas eu consegui cruzar a linha de chegada, em último lugar, e foi o momento mais importante da minha vida. Foi a minha maior vitória, foi o que me fez reconquistar a sensação de capacidade e o que me fez me reencontrar no mundo. 

Pedaço da Vila: Quando você começou a praticar a canoagem profissional, quais os desafios que encontrou nesse caminho?

Fernando Fernandes: Tinha pouca estrutura e conhecimento sobre o esporte… Eu tive que passar pelo caminho das pedras, criar formas, aprender a remar e a me adaptar. Foi um processo pioneiro, de acreditar realmente que aquilo seria a minha ferramenta, o meu prazer, o meu mundo, e colocar toda a minha força e energia nisso. Fui pioneiro no crescimento da modalidade para pessoas com lesão medular. Com um ano e meio de lesão, me tornei o primeiro Campeão Mundial na história da canoagem brasileira. Até então nenhum atleta tinha conquistado uma medalha de ouro em mundiais. 

Pedaço da Vila: A prática evolui muito nesses últimos anos?

Fernando Fernandes: Houve um crescimento absurdo. Quando eu comecei eram cinco atletas de paracanoagem, hoje são mais de 150. 

Pedaço da Vila: Por que você não se classificou para os Jogos Paraolímpicos do Rio 2016?

Fernando Fernandes: Devido aos processos de classificação funcional, que ainda são muito confusos, tanto no esporte paraolímpico como na paracanoagem. Houve muitos erros e acabei pagando por eles, pois colocaram os atletas em categorias erradas — muitos acabaram se beneficiando dessa funcionalidade. Isso me prejudicou como atleta e, no final das contas, acabei perdendo a vaga. Mas faz parte do crescimento da modalidade, da evolução do esporte. 

Pedaço da Vila: Há três anos, você fundou o Instituto Fernando Fernandes Life com qual objetivo?

Fernando Fernandes: Eu criei para poder transformar a vida das pessoas por meio do esporte, como aconteceu comigo. Queria mostrar às pessoas que elas também são capazes — usando, de repente, o caiaque! Queria levar auto-estima, revelar a capacidade delas. Preciso transmitir isso de alguma forma, e está sendo por meio do instituto. Só neste ano já atendemos mais de 2.500 pessoas. A gente não escolhe quem vai passar por lá. Tem gente com e sem deficiência. Lógico que a preferência é para pessoas com deficiências, mas, se trabalharrmos apenas com elas, não estaremos vivenciando a inclusão. O objetivo é mostrar para essas pessoas que elas podem ser o que quiserem. O trabalho, além da canoagem, inclui outros esportes, como Slackline, aulas de ioga, alongamentos, atividades com os pais. É um trabalho que envolve também os familiares, que fora dali, sofrem com o processo, pois a vida não é fácil: falta acessibilidade, condições financeiras, tratamentos corretos…

Pedaço da Vila: Como atleta e  comentarista dos boletins dos Jogos Paraolímpicos da TV Globo, 

qual o legado que esses jogos podem deixar?

Fernando Fernandes: Esse é o momento de usar os jogos para transformar a nossa sociedade, independentemente do número de medalhas que o Brasil ganhe. O que importa mesmo é a mensagem que a Paraolimpíada vai passar. É preciso mostrar às pessoas que incapacidade e deficiência física são coisas distintas. Mais importante do que a quantidade de medalhas será a mensagem desses atletas, que é a de transformação, de mostrar que os deficientes não são incapazes. Isso irá fortalecer essas vozes na sociedade. Essa mensagem é o maior legado desses jogos.  

Pedaço da Vila: Você vai protagonizar uma série de expedições para o Canal Off. Do que se trata?

Fernando Fernandes: Será uma busca pessoal, meu reencontro com a natureza extrema, tendo que lidar com as dificuldades, como estar no meio do mato com indígenas, depois no deserto de sal da Bolívia, depois no gelo da Noruega. A ideia é eu me virar nessas naturezas extremas para acampar, dormir, esquiar, descer corredeiras. É uma busca pessoal na qual eu vou transmitir essa experiência. As filmagens começam no primeiro semestre de 2017.

Pedaço da Vila: Qual o próximo desafio?

Fernando Fernandes: A canoagem segue como meu estilo de vida, meu instrumento de liberdade. Por enquanto o meu foco não é a preparação para as competições. Meu próximo objetivo, agora, será o programa no Canal Off; a canoagem é meu instrumento de preparação física para essa nova aventura.