CLERSON PACHECO

Fundador da ONG Soul Alegria, que há três anos realiza trabalhos lúdicos em hospitais públicos da cidade, o ator, especializado em ser palhaço de hospital, encontrou na arte teatral e circense a possibilidade de levar alegria e esperança a pacientes idosos, além de motivar os profissionais da saúde. Nesta entrevista ao Pedaço da Vila, ele nos conta os desafios para manter o projeto, revela a força transformadora da arte, fala do trabalho de formação de novos doutores palhaços e compartilha boas histórias colhidas nas visitas como “doutor miojo”

Pedaço da Vila: Qual é a sua formação?

Clerson Pacheco: Sou formado em artes cênicas e me especializei em ser palhaço de hospital, no atendimento a pacientes de UTI e pronto-socorro.  Trabalhei por muitos anos em uma ONG e aprendi a lidar com pacientes internados em alas desafiadoras, na pior parte do hospital. Durante dez anos fiz cursos de comunicação, humanização e relacionamento interpessoal dentro da UTI e do pronto-socorro da Santa Casa. Levei esse conhecimento para os cursos de palhaço do Soul Alegria, em 2011. 

Pedaço da Vila: Quando foi criada e qual é o trabalho realizado pela ONG Soul Alegria?

Clerson Pacheco: Ela foi criada em 2011 e realiza trabalhos lúdicos em hospitais, tendo como base a arte cênica e circense. O objetivo desse trabalho é levar alegria, esperança e principalmente cidadania para adultos e idosos carentes de estímulos quando internados em um hospital. Notei que esse tipo de trabalho era feito somente para crianças; então, resolvi fazer um projeto direcionado a pacientes mais velhos e aos próprios profissionais da saúde. Durante nossas visitas, percebemos que os profissionais da saúde eram os mais carentes, ninguém cuidava deles. Mas o foco do trabalho são os pacientes idosos, que querem contar suas histórias, ter alguém por perto para ouvi-los. 

Pedaço da Vila: Os doutores palhaços realizam esse trabalho em quais hospitais?

Clerson Pacheco: Atendemos duas instituições: o Servidor Público Municipal e a Santa Casa de São Paulo. Também levamos esse trabalho para outros hospitais que nos convidam; uns remunerados outros não. A ideia não é  apenas visitar, fazer palhaçada e não voltar mais; pelo contrário, criamos vínculos .

Pedaço da Vila: Como os pacientes reagem às visitas?

Clerson Pacheco: Algumas pessoas nos confundem com o médico e contam seus problemas, outros acabam resgatando memórias da infância… E tem gente que chega a confessar alguma história que não contou nem para a família, médico ou assistente social. Permanecemos no quarto o tempo que o paciente precisar. Não estamos ali para falar muito, e sim para observar a situação, ouvir e tentar direcionar a conversa…

Pedaço da Vila: Como é feito o treinamento para se tornar um doutor palhaço da Soul Alegria?

Clerson Pacheco: No treinamento específico, trabalhamos diferentes pontos para ele entender o que é um palhaço de hospital, como o teatro está integrado ao trabalho, e procuramos tanto o aspecto artístico como o cidadão. Existe uma linha muito tênue que difere um do outro. Então, o treinamento ajuda a entender o momento que devemos ser um, e o momento de ser o outro, e interferir no hospital. A formação do doutor palhaço inclui aula de cidadania, teatro e circo. No decorrer das aulas, é o próprio voluntário quem cria o seu figurino e o nome artístico. Costumamos falar que cada um tem um palhaço dentro de si, e no treinamento procuramos fazer os alunos descobri-lo.

Pedaço da Vila: Os hospitais estão abertos para receber esse tipo de proposta?

Clerson Pacheco: A maioria está. O que eles querem muito, o que até dificulta a entrada de novos doutores, é que haja bom senso, algo que todo doutor palhaço precisa. Isso acontece porque muitas pessoas entravam em projetos assim, mas abandonavam — ou porquê não aguentavam fazer esse trabalho ou porquê não levavam a sério como deveria. Os hospitais começaram a restringir um pouco isso e deixar apenas os grupos que atuam com seriedade. Acontece que, às vezes, as pessoas criam uma ilusão de que é tudo lindo em ser um palhaço de hospital, mas quando chega na hora, se depara com um trabalho que vai muito além de fazer palhaçada.

Pedaço da Vila: Quais são os principais desafios para manter esse trabalho?

Clerson Pacheco: A dificuldade central, como em tudo, é a parte financeira, de termos uma remuneração para realizar o  trabalho. Mas, claro, na Santa Casa e no Servidor Público escolhemos ser voluntários. Para dar continuidade ao trabalho, porque vivemos e nos dedicamos apenas a ele, precisamos de dinheiro. Para ir ao hospital tranquilo e não deixar o problema financeiro interferir no projeto, realizamos palestras lúdicas em escolas e empresas. Esse dinheiro arrecadado nos ajuda na parte psicológica; temos uma psicóloga que nos dá suporte para não levarmos para casa toda a carga negativa que encontramos nos hos-pitais. As pessoas devem entender que o palhaço precisa sobreviver com a sua arte. 

Pedaço da Vila: Como você entende essa força da arte na transformação da realidade?

Clerson Pacheco: Estudei teatro por muitos anos para ter recursos para saber conduzir uma conversa. O figurino de palhaço, na verdade, é usado como um quebra gelo para entrarmos no quarto e conversar com os pacientes. Cada objeto que levamos para as visitas tem uma história para ser. Esses objetos ajudam a fazer o paciente entrar na história e ser carregado para outro ambiente, fora daquele quarto, e isso é possível pela arte da palavra, do teatro, dos gestos. Isso dá muito certo, especialmente com os idosos que tanto precisam de atenção aqui no Brasil, infelizmente. Pela arte, nos afastamos do diagnóstico que o paciente recebeu naquele dia e viajamos juntos para o tempo em que ele conheceu a esposa, o primeiro baile, o primeiro beijo, o primeiro filho… 

Pedaço da Vila: Há algum atendimento que comoveu a sua equipe?

Clerson Pacheco: Uma história marcante foi a de um senhor que sempre ficava no escuro. Um dia ele concordou com a visita e deixou que eu acendesse a luz. Ele arrumou o cabelo e contou sua história: diabético, teve que amputar a perna e estava à espera de uma prótese. Perguntei o que fazia da vida, e ele revelou que era antiquário e já foi se sentando na cama. Permanecemos cerca de 1h30 conversando. Nesse tempo, ele também contou que foi a primeira drag queen do Brasil, estudou fora, morou em São Francisco, pegou a época de Janes Joplin, Jimi Hendrix, que era homossexual, que seu pai era militar, que conheceu a Liza Minnelli. Ele me trouxe uma carga de cultura tão bacana… Quando saímos de lá, ele estava sentado na cama, arrumando o cabelo, com a luz acesa…  Estava extremamente feliz! Esse é o tipo de trabalho que a gente quer realizar todo dia! Aquele senhor devia estar querendo contar essa história pra alguém há muito tempo!

Pedaço da Vila: Mesmo com tantas dificuldades para realizar esse trabalho, o que lhe inspira a continuar?

Clerson Pacheco: Eu acredito muito na causa. Quando eu trabalhava numa empresa e fazia esse trabalho paralelamente, falava para meu diretor teatral que todos deveriam acreditar na causa [palhaço de hospital] para eu poder me dedicar inteiramente à ela. A resposta dele foi: ‘a primeira pessoa que precisa acreditar nela é você’. Depois disso, larguei tudo e fui viver da minha arte. Estar no hospital faz com que as pessoas reflitam sobre a vida e a encarem de outra maneira. Eu não posso salvar, mas pelo menos estive ali para dar um pouco de alegria e atenção. Isso é o que todos nós da Soul Alegria acreditamos.

Pedaço da Vila: Qualquer pessoa pode ser voluntária do Soul Alegria?

Clerson Pacheco: Sim, basta entrar em contato conosco por meio do nosso site. Em agosto começaremos a formar uma nova turma, em parceria com a Chili Beans, que está nos ajudando. O curso de formação tem um custo de R$ 75,00 mensal, e dura três meses. Percebemos que o curso gratuito atraía pessoas que levavam tudo na brincadeira e não freqüentavam as aulas. Quando a pessoa sente que está dando uma contribuição, ela valoriza o trabalho e leva mais a sério. E isso tem dado certo. Após os três meses de curso, os novos doutores palhaços são encaminhados para visitar os hospitais e fazem parte da Soul Alegria.

Para saber mais:  www.soulalegria.com.br