Chiquinho, o memorável!

Francisco Villano, conhecido por muitas gerações como o Seu Chiquinho barbeiro, é o morador mais querido do bairro e talvez o mais antigo. Nasceu no dia 8 de janeiro de 1917 na Rua Humberto I e sempre viveu na Vila Mariana. Segundo dos sete filhos do casal de origem italiana Afonso Villano e Philomena Trotta Villano, ele completará 100 anos. “Meu pai sempre disse que não existe outro bairro melhor para viver”, conta a filha e vizinha Ilda.

Seu Chiquinho cresceu livre pelas ruas do bairro, na companhia dos amigos, filhos de imigrantes que formaram a Vila Mariana: portugueses, alemães, árabes e italianos. Fez da região o seu quintal, jogando futebol, bolinha de gude, empinando pipa e mergulhando nos lagos dos Campos de Barretos, hoje o Parque Ibirapuera. 

“As minhas tias contam que o meu pai aprontava muito quando era criança. Ele era muito teimoso e considerado o mandachuva do pedaço. Quando elas começavam a namorar precisava ser escondido, pois ele tinha muito ciúmes das irmãs”, revela Ilda.

Seu Chiquinho iniciou seus estudos em 1922 na ‘escola dos italianos’, na Rua Major Maragliano. Depois mudou para a Sete de Setembro, na Rua França Pinto. Sua trajetória em sala de aula foi encerrada na quarta série no Grupo Marechal Floriano, na Rua Dona Júlia. “Eu e meus irmãos precisávamos trabalhar para ajudar a minha família, algo que era muito comum na época”, sempre justificou.

Aos 10 anos de idade começou a trabalhar como ajudante na barbearia do tio Adolfo Trotta, na Rua França Pinto. Em pouco tempo assumiu a tesoura e a navalha — o primeiro cabelo que cortou foi o do próprio pai. Oito anos mais tarde abriu a seu próprio salão no número 165 da mesma rua. A inauguração foi numa sexta-feira 13 de dezembro de 1935. “Isso sempre me deu sorte”, costumava dizer.

O salão tornou-se um ponto de encontro da vizinhança, um local onde se conversava sobre qualquer assunto. “O meu pai sempre viu a barbearia como uma sala de visitas. Era ali que recebia os amigos. Ele sempre foi muito carismático, com uma lábia que conquistava todo mundo”, destaca a filha, que confessa que sempre foi fã número um do pai.

Namorar naquela época era complicado. As meninas sempre estavam acompanhadas dos familiares. E foi durante o trabalho na barbearia que viu Maria de Oliveira Villano pela primeira vez. O namoro, sempre fiscalizado pelos familiares, acabou em casamento. Ambos estavam com 28 anos na época e tiveram três filhos: Afonso Villano Netto, Aida Piccina e Ilda Villano do Carmo. “Somos conhecidos como ‘filhos do Seu Chiquinho’, e os nossos filhos, ‘netos do Seu Chiquinho”, brinca Ilda, incluindo à família os seis bisnetos. Viúvo desde os 69 anos, não quis casar-se novamente, embora tenha sido um galanteador a vida inteira. 

Ilda conta que a família ajudou muito Seu Chiquinho no trabalho e em casa. “Meu pai teve todo o apoio dos meus avós, tios e principalmente da minha mãe. Era ela quem administrava tudo; quem cuidava da matemática da casa, dos afazeres e quem acompanhava de perto os estudos dos filhos. O meu pai sempre gostou de trabalhar, mas não era muito bom na parte administrativa”, conta Ilda,que hoje, ao lado dos irmãos é a responsável pelo salão. 

Ao longo dos 89 anos dedicados ao ofício, Seu Chiquinho atendeu a clientela em três endereços no bairro: na Rua França Pinto, na Rua Rio Grande e, desde 1997, no piso térreo da sua casa na Rua França, no número 617. “Estar no salão sempre fez muito bem para o meu pai, sua vida foi em função do trabalho”. 

De sapato e traje social, o bem-humorado Seu Chiquinho abria religiosamente a barbearia às sete horas e nunca teve horário para fechá-la; os únicos dias em que não trabalhava eram no Réveillon, terça-feira de Carnaval, Sexta-Feira Santa e no Natal. “O meu pai tem o DNA do trabalho”, brinca a filha. Tanto que foi escolhido para ser o Ministro do Trabalho da República de Vila Mariana. 

Seu Chiquinho cortou o cabelo de seis gerações de famílias tradicionais do bairro, entre elas os Trotta, Nastari, Galucci, Martuchelli, Ianne e Galdieri. “Em todo lugar que eu vou alguém diz que já cortou o cabelo com meu pai. Ele é muito conhecido. Quando ele me falava que era famoso não imaginava que fosse tanto assim”, diz a filha. 

Em sua vasta cartela de clientes figuram grandes personalidades de diferentes áreas. Da política, o ex-presidente Jânio Quadros e o ex-prefeito de São Paulo Preste Maia; da música, os maestros Souza Lima e Diogo Pacheco; da literatura, os poetas Paulo Bonfim e Guilherme de Almeida; do futebol, os jogadores do Palmeiras Waldemar Fione e Armando Renganeschi, entre muitos outros que para ele são motivo de orgulho.

LONGE DAS TESOURAS

No trabalho ou nos momentos de lazer, a música erudita sempre embalou a vida de Seu Chiquinho. “A primeira coisa que ele fazia ao entrar na barbearia era ligar o radinho na Cultura FM. Meu pai sempre foi um grande apreciador de música erudita; seu ouvido era muito apurado e reconhecia a composição na primeira nota”, diz ela.

Assistir às apresentações ao vivo de orquestras no Theatro Municipal era um dos seus programas prediletos. Ao fim da peça gostava ainda de descer até a coxia para conversar com os músicos. “Ele era amigo de maestros e compositores; muitos eram clientes da barbearia. Quando não estava ouvindo música era fácil encontrá-lo lendo um livro sobre o tema ou uma biografia dos grandes compositores”, revela Ilda.

A música popular brasileira de Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Francisco Alves sempre foram as suas preferidas. Ele nunca foi de ficar parado em frente à TV, assistia apenas aos jogos do seu time, o Palmeiras. “Sempre marcava presença nos estádios. Às vezes fechava o salão e corria para o Palestra Itália para ver o segundo tempo da partida”, diz a filha, a companheira de arquibancada do palmeirense roxo. As rodadas de cartas e as partidas de bilhar com os amigos era outro passatempo.

O segredo da longevidade, segundo ele, está nas duas taças diárias de vinho, uma no almoço e outra no jantar. “Meu pai sempre gostou de pessoas e seu olhar sobre a vida sempre foi muito positivo. Se algo não ia bem, ele falava que no dia seguinte as coisas iriam melhorar!”.

MEMÓRIAS DA VILA

Desde 2006 Seu Chiquinho assinou a coluna Memórias da Vila, registrando as transformações do bairro e em sua própria vida. Entre tantas histórias narradas, no entanto, algumas não foram contadas, diz Ilda, que escolheu duas para compartilhar com os nossos leitores.

Na década de 1950, um italiano abriu uma barbearia na frente da dele, na Rua Rio Grande. “Meu pai não gostou da concorrência, pois o outro barbeiro, para roubar a clientela, cobrava um valor muito ínfimo. Daí começou uma guerra engraçada entre os dois. E, em casa, durante o jantar, o assunto era o que o concorrente, chamado Maurício, tinha feito naquele dia. Meu pai era muito competitivo”.

A disputa entre os dois seguiu por alguns anos. “Parecia uma boa comédia italiana”. A com-petição começou com o preço, depois com o horário; um queria abrir a barbearia mais cedo do que o outro, depois fechar mais tarde. As provocações eram constantes.

“Aos domingos apenas meu pai trabalhava e o concorrente mandava um fiscal para multá-lo por isso. Então meu pai começou a atender os clientes de domingo num quartinho no fundo de nossa casa. O quintal se transformou em sua sala de espera, repleta de clientes aguardando numa grande fila. A minha mãe não gostou de nenhum um pouco dessa história”, recorda Ilda.

Outra história que Chiquinho não contou aconteceu anos atrás. “Um dia o passarinho que meu pai tinha em casa escapou da gaiola e foi atropelado na rua. Ele ficou arrasado e chorou muito. O menino que ele estava atendendo quando o episódio aconteceu saiu do salão e voltou logo em seguida com outro passarinho, que ele pediu para a mãe comprar porque não queria que o Seu Chiquinho ficasse triste”. 

FÉRIAS MERECIDAS

Há três meses, Seu Chiquinho pendurou o avental branco, que sempre fez questão de usar durante o expediente, e vive em repouso em sua casa, no andar de cima do salão. “É ali que recebe os amigos e as visitas. Muitos clientes vêm cortar o cabelo e aproveitam para subir para dar um oi”, informa Ilda, que explica que o pai não tem nenhuma doença. “Ele está muito velhinho…”.

Seu Chiquinho também deixa de escrever suas memórias no jornal, algo que sempre fez com muito amor, revela a filha. “Ele adorava compartilhar suas recordações sobre o bairro. Quero aproveitar esse momento para agradecer a editora Denise Delfim, que cedeu a ele o espaço que o deixou ainda mais famoso. Agradeço aos leitores e aos clientes do salão; meu pai sempre teve um respeito muito grande por sua clientela”.

Para o Pedaço da Vila foi uma grande honra ter Seu Chiquinho durante esta década. Suas memórias são registros importantes sobre a história do bairro. Graças a ele essa história poderá ser transmitida para as gerações futuras. Suas memórias continuarão mais vivas do que nunca em nosso site e nas conversas da vizinhança — amigos de uma vida toda.

Seu Chiquinho sempre dizia que a saudade que ele mais sentia da Vila Mariana de antigamente era a forte amizade da vizinhança. “A união entre os moradores formava uma grande família. Quando uma pessoa adoecia, todos ajudavam. Essa relação nos dava muita confiança e tranquilidade, pois todos sabiam que poderiam contar uns com os outros”. Esse amor pelo bairro, pela família, pelo trabalho e amigos faz com que Seu Chiquinho seja eterno nos nossos corações.