À luz do abandono
Em 1999 a artista plástica Amélia Toledo (1926-2017) recebeu de seu oftalmologista um prazo de três meses para perder a visão. O impacto provocado pelo diagnóstico direcionou a sua atenção para as belezas que escapam aos olhos. Desse mergulho no escuro veio à luz, três anos mais tarde, a obra pública Parque das Cores do Escuro, inaugurada junto ao complexo viário João Jorge Saad, o famoso Cebolinha.
Construída num processo paciente que levou meses para ser concluída, a obra formada por mais de 100 pedras trazidas da Chapada de Diamantina (BA) ressignificou a área de mais de 8.000 m² da praça Soichiro Honda. Para a artista, falecida em novembro de 2017 aos 90 anos, o Parque das Cores do Escuro trouxe à superfície as matizes que se mantém cravadas no subterrâneo da terra: a arte produzida pela própria natureza.
No Parque das Cores do Escuro estão mais de 20 coleções de rochas e minerais jateados e parcialmente polidas que assumem diferentes colorações de acordo com a incidência da luz. São exemplares de grande porte de quartzos rosa, verde, branco e marrom, granitos, magnetita com calcita branca, calcita vermelha, serpentinita preta… “O local será um poço de energia”, previu Amélia Toledo à época da inauguração.
Naquela ocasião, em entrevista concedida ao jornal Pedaço da Vila, Toledo contou que a obra foi preparada para que o público pudesse desfrutar de um espaço de lazer e diversão no bairro. E revelou: “Eu criei esse parque para curar a minha cegueira. É para as crianças que eu dedico esse trabalho”.
Além das esculturas, acomodadas na praça com a ajuda de guindastes, o viaduto do Cebolinha também recebeu os cuidados de Amélia Toledo. A sua fachada é trabalhada em programação cromática com pintura em resina de poliuretano e pigmentos. Visto de longe, assume diferentes colaborações.
Hoje, o Parque das Cores do Escuro – encomendado pela prefeitura na gestão Marta Suplicy e orçado em R$ 210 mil reais – está praticamente abandonado. Sem qualquer informação no local de que se trata de uma obra de arte pública de uma das pioneiras da arte moderna brasileira, ela permanece no escuro. As pedras estão sujas, quebradas e pichadas; os quartzos rosas de 1 m³, queimados.
Na praça, o visitante não encontra uma única lixeira para depositar seus resíduos. Os lixos no chão denunciam o estado de abandono da paisagem: latinhas de refrigerantes, papel, plástico, bituca de cigarro entre outros materiais dividem o espaço com as esculturas de Amélia Toledo.
A prefeitura regional Vila Mariana (PRVM) diz que a coordenadoria de projetos e obras corta o gramado da praça a cada dois meses, no máximo. Em 2016, a comunidade plantou 50 espécies de árvores nativas da Mata Atlântica no local, entre elas umbaúba, bacanela, araçá amarelo e peroba.
Hoje, a praça se tornou endereço para pessoas em situação de rua no bairro. A equipe de zeladoria realiza a limpeza no local uma vez por semana, às quintas, diz a PRVM. Contudo, as condições do local revelam que a ação tem sido ineficiente.
Quanto às pichações no conjunto de esculturas de Amélia Toledo, a PRVM diz não ter contrato para executar esse tipo de serviço. Já sobre a instalação de lixeiras para que os frequentadores possam descartar seus resíduos, ela justifica que, até o momento, não existe solicitação da comunidade. Se os moradores pedirem, ela afirma que irá avaliar a possibilidade.
O supervisor de cultura da PRVM Leonardo Murasaki afirma desconhecer a existência da obra de Amélia Toledo no local. Questionado pelo Pedaço da Vila, ele soltou: “Onde fica?”. Ele ainda explica que a supervisão cultural da PRVM cuida apenas das feirinhas de artesanatos da região e auxilia a programação do teatro João Caetano e da Biblioteca Viriato Corrêa.
Outro problema encontrado no local é a falta de segurança. A ausência de iluminação adequada afasta o público da obra. Sobre isso, a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) diz que irá “consultar o Departamento de Iluminação Pública (Ilume) sobre dotação orçamentária para a instalação de postes”.
Enfim, registrada!
No inventário de Obras de Arte em Logradouros Públicos da Cidade de São Paulo, atualizado pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DEPH) no dia 5 de maio de 2018, o Parque das Cores do Escuro não consta na relação de obras catalogadas. Esse inventário é crucial para a preservação.
A Secretaria Municipal de Cultura (SMC) diz que o Parque das Cores do Escuro não estava registrado porque “a obra foi realizada em 2002 sem a anuência da Comissão de Gestão de Obras e Monumentos em Espaços Públicos da Cidade.
Em um e-mail enviado ao diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) Carlos Roberto Ferreira Brandão, o secretário municipal de cultura André Sturm informa que a obra foi “incluída ao acervo de obras públicas no dia 26 de junho”.
Desde o fim do ano passado, o MAC tem se disponibilizado para colaborar com o restauro e a preservação do Parque das Cores do Escuro. “O nosso questionamento à SMC sobre a obra a fez ser incluída”, diz Brandão [entrevistado desta edição].
O MAC, que possui obras de Amélia Toledo, como Caderno de Azul (1992) [resina acrílica e pigmentos secos sobre aniagem – 250 x 420 cm], se ofereceu à SMC para fazer a avaliação técnica e o laudo de conservação da obra. “Nós temos profissionais que fazem esse tipo de trabalho”, diz Brandão.
As condições apresentadas pela SMC inviabilizaram a ajuda, lamenta ele. “Quando respondeu ao nosso pedido, a SMC apresentou um Termo de Cooperação com prazo de 3 anos por meio do programa “Adote uma Obra de Arte” e uma série de exigências fora de nosso alcance. Queremos ajudar a conservar essa obra, não ser os responsáveis pela praça toda”.
O Pedaço da Vila solicitou ao DPH as informações sobre o restauro das esculturas danificadas e o tipo de manutenção que o Parque das Cores do Escuro recebe; e ainda questionou quais serão as medidas tomadas para recuperar a obra pública. Até o fechamento desta edição, não obteve respostas.
A “coleção de pedras da cidade de São Paulo”, modo carinhoso como Amélia Toledo costumava chamar o Parque das Cores do Escuro, foi elaborada para que o público a completasse. É uma proposta artística que rompe as travas impostas pelos espaços tradicionais como museus e galerias, nos quais o espectador e a arte permanecem distanciados.
Na concepção da renomada artista, público e obra se complementam. Cabe ao espectador preencher os vazios, a se aproximar, a sentar-se e, sobretudo, a sentir. As pedras foram lapidadas para acolher o visitante. Uma se parece com um Divã, outra com um sofá; há aquelas que celebram os animais, como os mármores que se parecem com jacarés e um granito que faz lembrar uma onça. A troca de energia entre público e obra é uma característica primordial na produção da artista.
Em seus setenta anos de carreira colorindo as paisagens pelo caminho, Amélia Toledo se mostrou uma artista de vastos recursos e transitou pelas mais diversas linguagens: desenhos, pinturas, design de joias, esculturas, instalações… A partir da década de 70 dedicou-se de modo mais intenso às formas da natureza, recriando paisagens e ambientes com os mais distintos materiais, da água à pedra.
Aqui na região, além do Parque das Cores do Escuro, a artista assina outras duas obras: Memórias da Água (2006), no Jardim Suspenso do Centro Cultural São Paulo, na Rua Vergueiro, 1.000; e Sete Ondas (1995), na área externa do Museu de Arte Moderna (MAM). Ao contrário do Parque das Cores do Escuro, elas estão preservadas e bem perto do público.
A ARTE DA RENOVAÇÃO
Em artigo escrito especialmente para o Pedaço da Vila publicado em julho de 2002, Amélia Toledo reflete sobre um novo modelo de espaço público
As energias das cores e das formas da natureza são fundamentais para a saúde da cidade. Para mostrar essa importância, a artista plástica Amélia Toledo propõe uma simples reflexão: “Imaginemos granitos em recantos obscuros e degradados da cidade, como viadutos”.
E ela prossegue, vislumbrando o dia em que as “monótonas calçadas cinzentas serão coloridas de sutis tonalidades e os granitos irão construir um grande mosaico virtual conectando os percursos como uma colcha de luz”.
Quando isso acontecer, as cores irão aliviar o cansaço da jornada com as suas aparições no caminho. “As praças se formam em círculos e blocos de pedras, criam oásis de cores e de energia, tonando-se apoios para o repouso e o devaneio em meio ao passeio; os discos de pedras acolherão como auditórios os grupos de música”.
Esses espaços são geradores de vida e oferecem, em suas fontes e olhos d’água, limpeza e purificação aos cidadãos, escreveu. “Eles ampliam os níveis de consciência
do habitante, tendo a arte e a cultura como fontes do fazer criativo”.
A artista destaca que as pedras e as águas são presentes, manifestações das paisagens, cores e luzes do seu interior. “Elas integram um organismo maior, um presente do planeta”.
O apoio de todos os setores da comunidade é fundamental para conseguir mudanças e para a formação de muitas identidades. “Com o esforço de todos, criarmos uma verdadeira cidadania”.
Amélia ensinou que “as áreas remanescentes nos oferecem luz, arte, movimento e informação, e que são fundamentais para desenvolvimento da criatividade e do restabelecimento da saúde mental e emocional da nossa cidade”.